Obituário de Mark Twain

Autoria: Gonçalo Nunes (LEIC)

Amigos, romanos, tecnistas, emprestem-me os vossos ouvidos, pois o PCP suicidou-se…politicamente!

Após a leitura de um artigo[1] de um dos mais ilustres membros daquela vil máquina de propaganda que é o Diferencial, não tenho opção senão vir enterrar o mais antigo partido político deste nosso Portugal. Qualquer bem que os bolcheviques possam outrora ter causado é hoje, largamente, ofuscado pelos seus hediondos crimes. Assim nos anunciam os nobres eletrotécnicos, que os modos antiquados dos descendentes de Cunhal já nada nos têm a oferecer e, se sólidos forem esses argumentos, então creio que está na hora de escrever o epitáfio dos putinistas.

Aos mais ávidos leitores deste jornal, terá sido invocada a negação do genocídio do povo ucraniano, durante a Grande Fome de 1932-1933. A negação de tantas mortes seria, sem dúvida alguma, um dos mais baixos pontos morais dos comunistas… Se essa fosse, de facto, a sua posição. Em março de 2017, o PSD propôs um voto para a condenação do Holodomor[2], ao qual o PCP se opôs[3]. Omitiriam, os eloquentes redatores de eletro, alguma informação? Jamais! Se o fizessem, seria por saberem que escrevem para os mais informados cidadãos, que, certamente, estariam cientes do deputado António Filipe ter reconhecido a existência de tal fome, tendo contudo negado a existência de uma intenção genocida.

É verdade que, no início dos anos 30 do século passado, o povo da Ucrânia sofreu uma vaga de fome de enormes proporções e de gravíssimas consequências. Seria desonesto não o reconhecer e, para desonestidade, já basta o voto do PSD. (…) Como estava a dizer, afirmar (…)  que a fome de 1932/1933 foi um ato de genocídio perpetrado pelo poder de Moscovo contra o povo da Ucrânia é uma tal falsidade que vem convergir com a violenta campanha de provocação contra a Rússia” – António Filipe

Calma, colegas, calma! Já vos oiço a interrogar: “Mas isso não é a mesma coisa?” Partilho da vossa inquietação. O objetivo aqui, não é concluir se tal genocídio decorreu ou não, nem tentar demonstrar que a posição do PCP é a correta. Aliás, seria deveras arrogante tentar fazê-lo neste texto, uma vez que, até entre historiadores e professores, isto é um tema controverso[4]. De facto, até hoje, menos de 20 estados reconhecem este evento como um genocídio[5]. Porém, se essa for a vontade da maioria, considerarei condenar estes restantes estados como anti-democráticos e extremistas, tal como pretendo fazer com o Partido Comunista Português.

Aproveitando este tópico, visitemos uma das interrogações centrais da peça de um dos mais honoráveis cronistas deste jornal. 

Porque é que esta recusa de condenar uma invasão não provocada por parte da Rússia colocou tanta gente em estado de choque?”

Ao contrário do que é por vezes insinuado e como temos visto nos últimos tempos a ser reforçado, o PCP não parece ter quaisquer problemas em lamentar a guerra decorrente. Há quatro meses, numa extensa entrevista com o Público[6], João Oliveira não só lamentou as mortes que o conflito tem vindo a causar, como salientou que o PCP tem vindo a apelar pelo diálogo e a paz, desde o início dos conflitos em 2014, recusando-se a juntar àqueles que só agora parecem reparar no que tem estado a acontecer, esquecendo-se dos mortos dos últimos 8 anos. A falha do deputado reside em não ter juntado as palavras “condeno” e “invasão” numa frase, bem como em não se mostrar extático com a ideia de enviar equipamento bélico para as frentes de combate, uma vez crê que apoio militar (a qualquer que fosse a fação) seria, claramente, um ato de agressão e não de luta pela paz na prevenção de mais mortes. São aquelas idiossincrasias da esquerda comunista, que me passam sempre ao lado.

Peço desculpa pela deambulação. Voltemos ao que importa: dar continuidade ao réquiem do defunto. Não mencionarei a incansável luta contra o fascismo e a extrema-direita, pois, se tal fosse necessário, há muito que já nos tínhamos perdido. Contudo, não consigo deixar de recordar as acusações que foram feitas a Álvaro Cunhal. Acusações estas, certamente verdadeiras e com as mais puras das intenções. Sem dúvida alguma, não é difícil encontrarmos simpatizantes comunistas que tragam líderes ocidentais e, mais concretamente, os EUA e a NATO para a conversa. Seria fácil aceitar isso como propaganda da agenda de esquerda, mas será que todas essas insinuações são infundamentadas? Da mesma forma que, noutro artigo, os leitores do Diferencial foram convidados a fazer uma pequena viagem pela história do partido mais antigo de Portugal, façamos agora mais uma, por outros eventos e posições igualmente interessantes.

Nas décadas de 70 e 80, vários governos de extrema-direita na América do Sul colaboraram na Operação Condor[7], que levaria à morte e tortura de milhares de pessoas[8][9], nos países em causa (para futura referência, isto, sim, são decisões com intenções objetivamente maliciosas e opressivas, a roçar no genocídio). Quer se acredite ou não que o governo norte-americano apoiou este operação, tornou-se claro, nos últimos anos, através de documentos desclassificados da CIA e do FBI[10][11], que sabiam de muitos dos crimes e violações dos direitos humanos que estavam a ser cometidos e planeados, mas nada fizeram para os impedir ou divulgar. A forma como os USA lidaram com este conhecimento é irónica (para não dizer hipócrita), quando comparada à atitude que tiveram para com Portugal entre 74 e 75[12]. Numa entrevista ao Expresso de Frank Carlucci[13], o antigo embaixador norte-americano em Portugal e secretário da defesa não nega que a administração de Henry Kissinger estaria em diálogos com Franco para uma eventual invasão espanhola a Portugal, nem que terá prestado apoio financeiro à campanha de Mário Soares. Admite também que existiam defensores da promoção da independência dos Açores[14][15] (lar da base de Lajes, utilizada pela força aérea dos USA) Carlucci acrescenta ainda que se opunha a essa ideia, mas apenas por acreditar que iria aumentar o apoio ao comunismo e sentimento anti-americano. Seria a situação política em Portugal tão instável e a sua democracia tão incerta, que merecesse que fosse ponderada uma invasão, enquanto milhares de pessoas desapareciam na Argentina? Seria o apoio popular a Mário Soares tão ténue e a ameaça comunista tão grande que necessitasse de apoio e intervenção estrangeira? Descansemos tranquilos, sabendo que a única força anti-democrática aqui presente era o Partido Comunista Português.


Se as forças políticas que, em Portugal, aplaudiram na altura os regimes da Operação Condor e conferiram comendas[16] a Frank Carlucci não se suicidaram politicamente, por estarem do “lado errado da história”, talvez isso só signifique que só cai sobre a sua espada o mais nobre de todos os romanos. Portanto, bebamos ao morto, até porque já falta pouco para a Festa do Avante!


Referências:

[1] https://diferencial.tecnico.ulisboa.pt/artigo/do-lado-errado-da-historia/

[2]https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/13/02/059/2017-03-04/36?pgs=36&org=PLC

[3] https://www.pcp.pt/sobre-voto-do-psd-de-condenacao-pelo-holodomor

[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Holodomor

[5]https://euromaidanpress.com/2019/11/23/holodomor-genocide-russia-the-great-ukrainian-challenge/

[6]https://www.youtube.com/watch?v=g_u8FUPgFwU

[7]https://www.theguardian.com/news/2020/sep/03/operation-condor-the-illegal-state-network-that-terrorised-south-america

[8]https://www.thenation.com/article/archive/argentina-dirty-wars/

[9]http://www.cels.org.ar/especiales/plancondor/en/#una-asociacion-ilicita-para-reprimir-opositores

[10]https://nsarchive2.gwu.edu/NSAEBB/NSAEBB125/index.htm

[11]https://www.nytimes.com/2019/04/12/world/americas/argentina-dictatorship-cia-documents.html

[12]https://www.dn.pt/politica/kissinger-queria-golpe-de-estado-de-direita-em-1975-4090551.html

[13]https://expresso.pt/politica/2018-06-05-Frank-Carlucci–1930-2018–Se-os-comunistas-tem-sido-mais-inteligentes-teriam-conquistado-o-poder

[14]https://unredacted.com/2010/11/19/document-friday-the-us-military-had-a-contingincy-plan-to-take-over-portugal/

[15]https://nsarchive.files.wordpress.com/2010/11/kissinger-schlesinger.pdf

[16]https://www.publico.pt/2004/09/22/politica/noticia/santana-lopes-condecora-hoje-frank-carlucci-1204087

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