Que o mundo de hoje ou o de ontem se revela, de quando em quando, imundo, perdido e raquítico não é novidade, mas viver de braços cruzados e sem esperança não basta. Do sentimento de uma incompletude surge a sede de um mundo melhor, justo, igual, fraterno, livre, completo, puro, enfim… o desejo de um Mundo mundo. Evidentemente que poderíamos abraçar o absurdismo de Albert Camus, mas tal não aconteceu inteiramente em Portugal, que viveu paradoxalmente o presente, zarpando na barca do sonho e naufragando a barca da realidade. Da viagem resultava uma sonata composta pelo destino de quinto império, o sebastianismo, o saudosismo, o messianismo, que se reflete num desejo ardente de um regresso ao paraíso. No entanto, ao mesmo tempo se compunha uma elegia ao nosso isolamento face a uma Europa que se desenvolvia a um ritmo alucinante.
Autoria: Samuel Neves, MF (FLUL)
Dois mitos marcam, profundamente, o messianismo em Portugal: o mito do Pecado Original e o mito Sebástico.
Adão e Eva viviam no paraíso onde o trabalho era prescindível e a vida era gratuita. Deus impôs uma restrição para habitar o jardim do Éden: poder comer a fruta de todas árvores excepto o fruto da Árvore do conhecimento do bem e do mal. Apesar da condição, os dois deixaram-se influenciar pela pérfida serpente e comeram o fruto proibido. Esta é, grosso modo, a descrição do mito. Várias interpretações podem ser sugeridas, como a violação da propriedade, a fragilidade humana ou a Recusa do Paraíso. A debilidade de Adão e Eva eivou a humanidade, que desde a transgressão foi condenada a trabalhar para satisfazer as suas necessidades. Prosseguiremos na terceira sugestão.
“O homem é o animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuitamente lhe dão” (Souza, 1985)
Portugal recusa-se, precisamente, a recusar o paraíso e anseia tateá-lo (se não for plenamente, que seja com a ponta dos seus dedos). Este mito é presente na alma dos portugueses da Idade Média e em pensadores contemporâneos como Agostinho da Silva e Teixeira de Pascoaes. Não nos esqueçamos que somos um país que celebra o culto do divino Espírito Santo em Tomar, nos Açores, na Madeira, expandindo as celebrações para o Brasil e América do Norte (pelas comunidades açorianas presentes). De onde surgiu a tradição?
A sua origem tem diferentes narrativas, mas na perspectiva do historiador Jaime Cortesão teve forte influência dos franciscanos espirituais, pertencentes à Ordem dos Franciscanos, influenciados pelo pensamento do abade Joaquim de Fiore, que divide a história em três idades: a Idade do Pai (Antigo Testamento), a Idade do Filho (Novo Testamento) e a Idade do Espírito Santo (Porvir). Trata-se de um pensamento messiânico e profético da anunciação de uma era Eterna. Várias narrativas afirmam que o início das celebrações deste culto remonta ao reinado do Rei-Poeta D.Dinis, casado com a Rainha Santa Isabel (que influenciou a proliferação do culto). O pensamento de Agostinho da Silva está profundamente ancorado nestas celebrações, projetando para o futuro o cumprimento das ideias dos portugueses do século XIII. O que é o Império do Espírito Santo ?
Para Agostinho da Silva, divide-se em três ideias principais: as crianças como imperadores do mundo; o bodo; a libertação dos presos. Não se assuste o leitor perante esta petulância. A primeira ideia é uma referência à liberdade para a criança se experimentar, para se “cumprir”. Desta forma, o menino é imperador por decidir os destinos da sua aprendizagem e não estar sujeito a um plano curricular obrigatório imposto pela sociedade. A segunda ideia trata-se da gratuidade e da supressão da fome e da pobreza. Por fim, a libertação dos reclusos baseia-se na ideia de que os prisioneiros o são por influência do meio débil em que estão inseridos. Estes três intentos estão incumbidos a Portugal de os cumprir e estão em consonância com a ânsia de um Regresso ao Paraíso. Desta indagação sobressai a crença de um lugar futuro e pleno, um messianismo de caráter escatológico e ontológico. Em falta, está uma dimensão soteriológica que o Mito Sebástico vai tornar presente.
O mito de D.Sebastião é a confirmação de um sentimento paradoxal português. Descemos do paraíso mas mantivemo-nos no paraíso (?). Neste caso, o paraíso trata-se da epopeia que tão bem cantou Camões n’Os Lusíadas. Portugal não soube o que era bastar e lançou-se aos mares como quem constrói templos com material para fazer barracas. Fomos os primeiros a olhar a imensidão azul do mar e a navegar “Por mares nunca dantes navegados” (Os Lusíadas, Canto I), expandindo um império que pensamos ter na nossa palma quando apenas o tínhamos na nossa alma, como o futuro dirá. Apesar de Portugal ter deixado a sua marca na Europa (da qual posteriormente nos isolámos) uma ferida abriu-se no momento em que o jovem Sebastião, demasiado aventureiro, decidiu corajosamente lutar em Alcácer-Quibir. O resultado de tão arriscada ação só poderia ser um: Nuestros hermanos tomarem conta de nós. Este golpe foi tão profundo que a ferida se manteve viva por longos anos. Porque nos mantivemos no paraíso?
Porque Portugal é uma “ pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação” (Lourenço, 2000). Não quisemos abraçar a realidade da nossa decadência, vendo mais do que aquilo que éramos. O Rei desaparecido torna plausível a esperança no seu regresso para salvar a soberania portuguesa, sobressaindo a crença messiânica num Messias-Salvador personificado n’O Desejado, sendo as Trovas do sapateiro de Trancoso a prova viva. Contudo, a sua ausência faz-se sentir e com o tempo novas compreensões surgem, alicerçando “o sebastianismo como teoria do Estado ” (Gomes, 1987). Destaca-se o insigne Padre António Vieira, com uma visão diplomática incomum, que soterrou o sebastianismo passivo, que aguardava O Encoberto (não o esquecendo como marca histórica), para erguer um sebastianismo activo, fazendo deste “uma cultura e um projeto de mudança da ordem mundial” (Gomes, 1987). A estimada loucura vieirina é tal que profetizou um Portugal Imperador do Mundo, a quem foi incumbido de cumprir o Quinto Império, poeticamente cantado por Bandarra, o sapateiro de Trancoso, e realizado numa dimensão político-religiosa por Vieira. Um império universal e último, onde a paz é perpétua, a fraternidade é sem fim, o divino vive no mundo e na humanidade, e o orbe é uma Ilha dos Amores. Mais contemporâneo, no século XX surge um terceiro profeta, autor da Mensagem, que mantém o seguimento de um império último, ecuménico, onde habitam todas as pluralidades do saber humano (como a astronomia, a astrologia, a alquimia, a química, a religião, a ciência, a arte, a mística, entre outros) em harmonia. O próprio poeta nos mostra a sua ideia de Quinto Império com a diversidade de heterónimos presentes na sua identidade, ou seja, a pluralidade dos seres na unidade do Ser. Nasce, portanto, a tríade que caracteriza o messianismo em Portugal: soteriológico-escatológico-ontológico. Faz sentido realizar o Quinto Império colocando Portugal como superpotência mundial, liderando os desenvolvimentos tecnológicos, científicos ou económicos? Num olhar sobre a história a resposta parece ser negativa.
Não tivemos uma Revolução Científica. Tivemos exceções, como por exemplo Pedro Nunes, mas pouco contribuímos nesta época. No século XVII, por exemplo, tínhamos uma matemática cartesiana, newtoniana, leibniziana, entre outras, e em Portugal o ensino da matemática era quase inexistente. Também no século XVIII e XIX, pouco se sentiu a Revolução Industrial, e tampouco o século das Luzes (onde Luís António Verney é excepção), notando-se também um elevado atraso em relação a uma Europa ébria de Nietzsche, Bergson, Schopenhauer, Van Gogh, Monet, Tolstoi, Dostoievsky, Augusto Comte, Sigmund Freud, entre outros.
Só no século XIX se começou a pensar lucidamente a nossa realidade, digerindo a nossa história e podando o que havia em nós de excessivo, o que aconteceu na época do romantismo inicialmente com Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Não se pode dizer que nos livramos do passado, mas olhamos com “olhos de ver” um Portugal caído, idílico e exilado, influenciando futuras gerações como a Geração de 70 ou a Renascença Portuguesa, aproximando-nos da cultura europeia. Este olhar sobre a nossa história não se centrou na esfera do transcendente e permitiu extrair “a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência” (Lourenço, 1999): a Saudade.
Esta Saudade não é necessariamente corpórea, material, objetiva. Também não é inteiramente nostalgia ou melancolia, pois estes sentimentos fixam-se num passado, num lugar ou num momento que foi vivido. “A Saudade é a memória da noite que passa, mas é também a expectação do dia que se anseia, (…) é nostalgia enquanto sentimento do passado longínquo, mas é esperança de longínquo futuro” (Gomes, 1987). “Com a saudade não recuperamos apenas o passado como paraíso; inventamo-lo” (Lourenço, 1999). Do nosso passado evidencia-se um isolamento, o que implica uma vivência íntima do presente, brotando uma convivência paradoxal perante a vida, onde a dor e a alegria, o passado e o futuro, a presença e a ausência, o pessimismo e a esperança, são estranhamente conjuntas. Perante o passado, sentimos a presença de uma ausência ou de uma carência ôntica, que vivemos num nível trans-realista, mais onírico que empírico, em comunhão com o futuro, onde a esperança é bem presente.
É Teixeira de Pascoaes (um dos pensadores da Renascença Portuguesa do século XX) quem mais reflete a Saudade como identidade nacional, como religião lusitana, religião essa que é panteísta (o divino presente na natureza) e não romana. Tome-se a religião num sentido lato. Pessoalmente, um poema que muito bem traduz o panteísmo saudosista é da autoria de Alberto Caeiro, Num meio-dia de fim de primavera. Deleite-se o leitor a saborear os versos belos e intensos e a contemplar o sonho do poeta, que viu “Jesus Cristo descer à terra” (Caeiro, 2012). Como está a Saudade vinculada ao mito do Pecado Original? E ao mito Sebástico?
Como consciência da dor de uma carência ontológica, a Saudade divide-se em “ três instantes do ser: a memória da origem, a consciência da queda e a vontade de ascensão” (Gomes, 1985). Inter-comunicando os dois mitos, pela memória de um passado longínquo e pela consciência de uma realidade indesejada, ansiamos um regresso, uma ascensão ao Paraíso, ou a vinda deste à terra. Ansiamos, essencialmente, uma ligação entre o divino e o homem que só o Amor pode cumprir. Quem virá então para salvar a humanidade, salvar os homens? Será El-Rei D.Sebastião. E quem é este Rei-Encoberto? Não se pode revelar O Encoberto, caso contrário seria O Descoberto. Convido o leitor a olhar Portugal e a ouvir a sua voz íntima sussurrando a resposta. Façamos do Quinto Império o Império do Espírito Santo e deste o paraíso. Utopia?
“Utopia é próprio do ideal, que pode não ter lugar” (Gomes, 1987). Mas o Quinto Império tem um lugar, que é o mundo. Além disso, da irrealidade do lugar não se sucede que seja impossível a sua realização. A sua realização não pode ser impetuosa, deve ser um caminho contínuo e cuidado que se faz das sinuosidades à plenitude. A conjuntura atual é o momento ideal para repensar e melhorar os sistemas existentes. Temas como o Rendimento Básico Universal, a economia circular, a agricultura circular e biológica, o futuro do ensino, a ligação do campo ao ensino, novas formas laborais, entre outros, ganham sentido neste contexto pandémico, não para continuar o Homem a trabalhar cerca de um terço do seu dia para seu sustento ou obrigação, mas para que possa ter também os seus momentos de Poeta (que é aquele que cria), os seus momentos de realização pessoal e livre, longe das obrigações. Enfim, o que Edgar Morin sugere: o favorecimento da Poesia sob a prosa.
Bibliografia
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Lourenço, E. (1999). Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Gradiva .
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Natário, M. C. (2007). Entre Filosofia e Cultura . Zéfiro.
Natário, M. C. (2010). Itinerários do Pensamento Filosófico Português. Zéfiro.
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Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, Sebastianismo e quinto império: o nacionalismo pessoano à luz de um novo corpus
João Leal, Nação e império: Agostinho da Silva e as Festas do Espírito do Santo
Sérgio Franclim, Portugal Templário: História e Mito