Autoria: Beatriz Gomes (MEIC), Júlia Coelho (LEFT), Mariana Campos (MEAer), Patrícia Marques (MECD)
Com a crescente participação feminina na engenharia e ciência, o Diferencial conversou com três mulheres de referência: Helena Ramos, Inês Lynce e Rita Santos, que se destacam nas áreas de eletrotécnica, informática e física, respetivamente. Em diferentes fases das suas carreiras, partilham os desafios, lições e escolhas decisivas que moldaram o seu percurso.
Helena Ramos é professora catedrática no Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores (DEEC) desde 2023 e a única mulher entre os 22 catedráticos do departamento. Com uma longa trajetória de ensino no IST, é também investigadora no Instituto de Telecomunicações (IT) e especialista em testes não destrutivos. Coordena o projeto RollerPredict, é autora de mais de 200 artigos científicos e tem ocupado diversos cargos de liderança no DEEC e no Técnico, incluindo vice-presidências no Conselho Científico e no Conselho de Gestão. Fundou o grupo Gender Balance@Técnico e desempenha ainda funções no IEEE Instrumentation & Measurement Society.
Inês Lynce leciona no Técnico desde 2005 e é professora catedrática no Departamento de Engenharia Informática (DEI) desde agosto de 2021. Num universo de 21 docentes catedráticos do DEI, é uma de apenas 4 mulheres (cerca de 19%). Além da sua atividade académica em Inteligência Artificial, é a atual presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores: Investigação e Desenvolvimento (INESC-ID), e é co-diretora do Carnegie Mellon Portugal Program. Entre 2015 e 2018, coordenou a Licenciatura em Engenharia Informática e de Computadores.
Rita Santos terminou o Mestrado em Engenharia Física Tecnológica (MEFT) em 2023, co-fundando o núcleo AmbientalIST, e está no início da sua carreira como investigadora. Após um estágio de um ano nas Ilhas Baleares, em Maiorca, iniciou recentemente o doutoramento no Centro de Astrofísica e Gravitação (CENTRA). Trabalha no grupo COSTAR no desenvolvimento de modelos para poeira interestelar através do estudo de espetros de galáxias.
Desafios no percurso académico e profissional
Enquanto antiga aluna e docente no Técnico, Inês Lynce partilha do sentimento de várias mulheres na ciência: de que está “em minoria”. Embora isso “não [a] incomodasse muito” no início, reflete que, com o tempo, “a pessoa habitua-se, com o que isso tem bom e que tem mal”. No entanto, ao longo dos seus mais de 30 anos enquanto membro da comunidade do IST, não pôde deixar de notar que “a percentagem de mulheres a entrar em informática não subiu quase nada, o que [acha] assustador”. Apesar disso, salienta que hoje há finalmente “uma consciência do problema”, algo que, na sua opinião, é o primeiro passo para o resolver. Destaca também uma “valorização do contributo das mulheres, que não é feita simplesmente para ficar bem”.
Rita Santos também relata o seu confronto com este desequilíbrio: “muitas vezes pensei «eu sou uma em 20» e, logo no início, fui procurar amigas para combater essa sensação”. Confessa que durante o curso “gostaria de ter tido mais professoras”, mas contrapõe, com leveza, que acredita que tudo depende “do tempo”: “Em comparação aos anos anteriores, há cada vez maior percentagem de raparigas, e tenho a sensação que daqui a uns anos isso vai traduzir-se em mais professoras”.
Por outro lado, Inês Lynce relata observar uma diferença na forma como homens e mulheres encaram situações profissionais. “Nós [mulheres] temos uma insegurança natural, somos muito conscientes das nossas limitações”, exemplificando que “para uma candidatura a um local de trabalho, quando pedem cinco anos de experiência profissional, se as mulheres têm quatro, não se candidatam e se os homens têm quatro candidatam-se”, afirmando ser “um modo de ser diferente”. Helena Ramos concorda: “Em termos de carreira, o que acontece é que nós próprias nos castramos um bocado”. As mulheres tendem a ser excessivamente “cautelosas” nas suas escolhas e preocupadas com as suas consequências, o que, acredita, impacta a sua chegada a posições de topo.
Decisões marcantes no percurso de investigação
A nível de concretização profissional, as três demonstram sentir-se realizadas. “Não quero um prémio Nobel”, manifesta a doutoranda Rita Santos: “Não é a conquista que me move, mas sim o facto de gostar de fazer o que faço todos os dias”. A catedrática Helena Ramos diz-se “muito satisfeita” com a sua área de investigação, destacando especialmente a oportunidade de trabalhar com alunos de diversos cursos e níveis: “Não teria sentido se não tivesse cá os alunos.” Inês Lynce partilha deste sentimento, e acrescenta ainda que a liberdade profissional proporcionada pela vida académica é “uma coisa fantástica”, destacando a possibilidade de “acordar um dia, olhar para uma situação, e dizer «deixa-me cá investigar isto»”.
As decisões tomadas após a licenciatura foram das mais marcantes dos percursos profissionais das professoras Inês Lynce e Helena Ramos. Helena recorda que teve a oportunidade de trabalhar na Siemens, mas recusou, pois o trabalho era “muito à engenheiro”. Para além do gosto por continuar a estudar e a dar aulas, tinha o desejo de fazer “qualquer coisa nova”. Inês Lynce completa, relembrando que ao terminar o mestrado, “ainda tinha vontade de aprender mais, do ponto de vista académico”. Rita concorda: “Eu tive uma forte sensação de que queria continuar a aprender”.
Rita Santos acrescenta ainda que a decisão mais drástica surgiu mais cedo: “decidir se ia para Ciências ou Humanidades” e que, mais tarde, a escolha do curso universitário tornou-se natural. Partilhou ainda sobre a sua transição de área de investigação de relatividade numérica na tese de mestrado para o estudo de poeira interestelar com análise de dados no doutoramento. Nota, contudo, que “uma coisa que gostava – poder estar sempre a mudar de tópico – não é um percurso muito valorizado”.
Mulheres em cargos de gestão e liderança
Inês Lynce é a primeira mulher a presidir o INESC-ID, um marco significativo para a liderança feminina na engenharia. Mas chegar lá não foi apenas uma questão de mérito, como também de volume, já que quando a convidaram para o cargo, a sua primeira reação foi de surpresa: “Mas quando eu falo, ninguém me ouve”. Consciente dos desafios de se afirmar num meio predominantemente masculino, refletiu sobre a forma como se fazia ouvir: não bastava competência; era preciso presença, projeção e firmeza. “Temos que falar grosso para ser ouvidas”, partilha, consciente de que a engenharia ainda carrega uma cultura moldada por vozes tradicionalmente masculinas.
Em 2016, Helena Ramos fundou o Gender Balance@Técnico para promover a igualdade de género no IST, reforçando que a diversidade na investigação pode levar a “contribuições muito originais”. O grupo acompanha a progressão feminina na carreira académica e de investigação, criou o Prémio Maria de Lourdes Pintasilgo e gera mentoria informal. Além disso, promove a engenharia entre raparigas, sublinhando que é uma área criativa, inovadora e acessível a diferentes perfis, não só aos “nerds da engenharia”: “Quem vai para engenharia não significa necessariamente que vá fazer engenharia, mas que vá utilizar a engenharia como uma ferramenta.” Destaca: “Não há razão para só virem [para o IST] os melhores dos 50%, dos homens, mas de toda a gente”.
O futuro das mulheres na ciência e engenharia
No debate sobre a entrada feminina em áreas de engenharia, discute-se se esta já atingiu um “plateau“. Helena Ramos refuta a ideia, argumentando que ainda há polarização: “Há cursos em que há um preconceito em como as mulheres não são felizes. Eu acho que não é verdade”. Acredita que, ao desconstruir esta visão, é possível atrair mais raparigas. Rita Santos partilha a preocupação, especulando sobre o futuro aumento do rácio de mulheres na investigação como não sendo “assim tão óbvio, porque depende muito de estarem a ser encorajadas a progredir na carreira científica ou se poderá haver alguma falha neste aspeto”. Inês Lynce expressa a mesma inquietação, destacando que é fundamental aumentar a diversidade na ciência, particularmente na informática: “se for toda feita por homens, estamos feitas, não é? Os jogos vão continuar a ser jogos masculinos e as apps masculinas”.
Sobre quotas, Helena Ramos relata que “era contra e [foi] durante muitos anos.” Conta que, no Técnico, as jovens estudantes não sentem os problemas que as mulheres “têm lá fora”, como desigualdade salarial, mas depois percebeu que persiste algum estigma: “Ao longo da minha vida profissional, as coisas não se mantêm assim”. Por isso, conclui: “Eu sinto-me um bocado incomodada [por iniciativas como quotas e prémios para mulheres], mas, apesar disso, neste momento, defendo-as”. Inês revela também alguns sentimentos duplos relativamente à temática, concluindo que “é verdade que as quotas têm o aspeto mais negativo, que parece que as pessoas estão lá, não pelo mérito, mas pela quota. Mas, se não for assim, as coisas não mudam”. Relativamente a prémios para mulheres revelou apoio, acreditando que devem existir “mecanismos de promoção de minorias”.
Quanto às jovens que estão agora a terminar a sua formação e a considerar seguir a carreira académica, Helena Ramos diz que “as coisas estão mais facilitadas, na medida em que já se percebeu a riqueza em todos contribuirmos” e conclui com: “Não sejam cautelosas, vão para a frente”. Inês Lynce destaca que, ao escolher o percurso académico e profissional, o essencial, “independentemente de se ser rapaz ou rapariga, é que [se faça] uma decisão informada e que [se goste]”. Para as mulheres, destaca a importância de se “ter orgulho no ser mulher”. A sororidade, que é “a solidariedade entre as mulheres”, é dos sentimentos mais importantes para a catedrática. “Se me perguntassem quem é que eu admiro: admiro as minhas colegas. Colegas que são também as minhas alunas, embora seja diferente.”
Para Rita, a gestão de expectativas esteve sempre no âmago de um progresso saudável, desde a entrada na faculdade, quando concluiu a importância de “estar okay com não fazer uma coisa muito bem, e com haver tanta gente tão boa [em comparação]”. Já no desenvolvimento da sua investigação, no mestrado e doutoramento, alude à filosofia de “trabalhar não pelo objetivo, mas pelo processo”. Para futuras investigadoras, Rita destaca “perceber se gostam do dia-a-dia enquanto escrevem a tese – isso é um bom indicador. Se ainda assim tiverem dúvidas, façam uma confirmação: fazer um estágio [por exemplo] é sempre muito útil. Vão experimentando. Não precisam de saber o que querem: ir fechando portas também é uma maneira de escolher”.