Autoria: Renato Mântua (LEAer), Tomás Fonseca (LEIC)
Enquanto que o Técnico é um lugar para as matemáticas e engenharias precisas e exatas, os seus estudantes não se conformam com este pragmatismo. Desta forma, a arte ainda consegue florir nesta paisagem que, à primeira vista, pode parecer tão árida e desprovida dos nutrientes necessários. Assim, no dia 22 de Novembro do ano passado, a equipa do Diferencial foi conversar com Indigo Dias, um dos músicos mais prolíficos desta instituição.
Tomás Fonseca (Diferencial): Olá, podes começar por te apresentar? Dá-nos uma breve introdução de quem és, o que é que fazes.
Indigo Dias (Dispirited Spirits): Olá, eu sou o Indigo Dias, do projeto Dispirited Spirits. Neste projeto fundado em 2020, sou eu quem faz toda a composição, gravação e afins, sozinho, em casa, no meu quarto, e ao vivo toco com uma banda. É um projeto que vai desde o Midwest Emo, ao Post-Rock e à Neo-Psychedelia. Neste momento, tenho dois álbuns, um lançado em 2021 e agora um lançado em 2023, chamado Redshift Blues.
T: Numa entrevista anterior, falaste em como sempre estiveste interessado em música, que sempre gostaste de a ouvir e que o teu pai também a apreciava. Como é que isso se refletia em tua casa e em quem tu és hoje em dia?
I: Não sei, acho que foi só o primeiro push inicial, porque, para ser franco, o gosto musical que eu tenho hoje em dia e a profundidade que eu tenho de conhecimento musical não tem nada a ver com essas raízes. Foi só mesmo um empurrão inicial, uma vez que, se eu ouvisse alguma coisa mais fora do comum era Pink Floyd. Isso não é fora do comum. Para além disso, o meu pai e os meus tios tocavam em banda, por isso, foi mais dar a conhecer que essas coisas existem.
T: Consegues explicar, brevemente, o teu caminho musical?
I: Eu sempre fui brincando com instrumentos, mesmo com os de criança. Aliás, acho que a minha foto no Spotify, na minha conta pessoal, sou eu a tocar com uma guitarra de brincar quando tinha 3 anos. Aos 7 anos, pedi para começar a tocar guitarra e a ter aulas privadas, não no conservatório. Comecei a ter aulas, tive-las durante 3 ou 4 anos de guitarra. Aprendi os básicos, saí e a partir daí comecei só a tocar sozinho. Mais ou menos nessa altura comecei a tocar numa banda de jazz, em que tocávamos covers, como Miles Davis, Duke Ellington, entre outros. Era mais virada para standards de jazz. Eventualmente, isso acabou e eu perdi um bocadinho o interesse pela música tradicional – as in música tocada com instrumentos. Comecei a ter mais interesse por música eletrónica, como DJing. Sendo assim, aprendi a produzir este género, future bass, música que estava na moda, na altura, num espaço mais online, como Porter Robinson. Também fazia DJ em eventos locais, tipo festas de secundário. Mais recentemente, quando me aproximei mais de começar este projeto, comecei a ganhar outra vez mais interesse por música tocada com instrumentos, rock. Nessa altura, voltei a ouvir e a aprofundar muito o conhecimento musical e o que é que existe dentro de todos os cantos do género. A partir daí, ganhei a inspiração para começar o meu próprio projeto.
T: Durante esse tempo em que estavas mais focado em música eletrónica, continuavas a tentar tocar guitarra, tocar instrumentos ou era mais só DJ?
I: Era mesmo só mais produção e eletrónica, ou até produção mesmo eletrónica. No máximo, toquei teclado, porque era MIDI.
Renato Mântua (Diferencial): Ao longo da tua carreira, que álbuns sentiste que te foram influenciando mais nos vários momentos?
I: Posso dizer para cada um dos álbuns que lancei. Para o primeiro álbum era muito à base de uma vertente do indie bastante DIY. Ou seja, era muito Car Seat Headrest, nomeadamente o How To Leave Town, o You Will Never Know Why dos Sweet Trip, até a certo ponto o Lonerism dos Tame Impala, e depois cenas não tão diretas mas que me influenciaram sempre, como o OK Computer dos Radiohead e o Dark Side of The Moon dos Pink Floyd, mas são mais clássicos. Para o segundo álbum, comecei a expandir muito mais em termos de tecnicidade e de proficiência na escrita em si e também na profundidade emocional, pelo que tinha muito a ver com o emo. Acho que álbuns que basearam muito o som do segundo álbum foram provavelmente o Animals dos TTNG, o Long Dark Path Home dos New Found Interest in Connecticut. Muitos álbuns mathy, por exemplo, De-Loused in the Comatorium dos Mars Volta. Também Black Midi, Black Country, New Road. Em geral, Black Country, New Road e esses álbuns de emo.
R: Enquanto artista, como foi crescer no Algarve?
I: No Algarve? Longe de tudo o que é centro cultural nacional… É muito self-contained, no sentido em que parece um bocado… a terra da Barbie, como no filme. Só focado na vida da praia, o ano corre todo à volta do verão, porém, fora do verão não há nada para fazer. Em termos de circuito musical, há muitos polos self-contained de música. Por exemplo, em Faro, onde eu vivia, havia a Associação Recreativa e Cultural de Músicos de Faro, que era uma comunidade onde havia concertos, salas de ensaios, mas eram cenas muito, muito… não sei como é que se diz em português, mas a palavra é mesmo “self-contained”. Era muito isolado, não havia “comunicação com o exterior”. E via-se muito Lisboa como um pipe dream e uma cena externa. A primeira vez que eu fui a um concerto a sério foi, provavelmente, no Festival F. O Festival F é a única oportunidade que pessoas de Faro, por exemplo, têm para contactar com bandas de Lisboa e bandas mais conhecidas. Eu fui na edição de 2019 e foi a primeira vez que tive contato com bandas como Glockenwise, Linda Martini, Bruno Pernadas, artistas que nunca iriam a Faro se não fosse nesse tipo de festival.É uma experiência culturalmente muito isolada. Obviamente que também há muito teor de qualidade em termos musicais em Faro, só que há um isolamento muito auto-imposto, mesmo pelos artistas algarvios, e isso difere muito em Lisboa.
T: E como é que está a ser, uma vez que estás cá? O que é que sentes que te impactou mais, por ser tão diferente do Faro?
I: É mesmo o contacto com a cultura. Por exemplo, ontem fui ver os Model/Actriz, que é uma cena… Ver bandas que eu ouço no meu quarto e que o pessoal ouve na sua vida e conseguir ter contacto com esses artistas diretamente e em concerto é incrível, mas que é uma coisa que só em Lisboa ou no Porto é que isso acontece. A não ser que seja algo como os The Microphones irem a tocar a Viseu, mas isso ninguém explica. [risos] Mas é muito esse contacto. As coisas tornam-se muito mais reais, parece que os artistas não são só uma cena que está no teu telemóvel. Eles realmente existem e fazem concertos e andam por aí, e essa conexão quase também que dá um bocado aquela “pica” de “eu também posso fazer isto, também posso ser eu a ir a outros sítios e a partilhar esses momentos.”
R: Tu referiste que és o instrumentista em todos os teus álbuns. Que instrumentos tocas?
I: Eu toco o que for preciso. O meu instrumento principal é a guitarra. No entanto, no último álbum, por exemplo, o saxofone fui eu quem tocou, aprendi para tocar no álbum. Tudo o que seja baixo, compor baterias, partes de teclado, sou tudo eu quem toca.
T: Também queríamos saber como é que conseguiste gravar o teu primeiro álbum. Como foi a experiência de fazer tudo sozinho e quais foram os principais takeaways? Ou seja, o que é que conseguiste aprender para aplicar neste novo segundo álbum?
I: Produção é uma experiência muito de trial and error. Uma coisa muito engraçada que acontece quando produzes tudo sozinho é que se fizeres duas demos seguidas, a primeira pode ser abominável e a segunda pode ser OK. A primeira pode soar como a pior coisa que tu ouviste e a segunda “OK, vou fazer disto uma música.” Sendo assim, o que aprendi mais a fazer para o segundo álbum foi, visto que também tornei a música muito mais complexa, muito mais técnica, imaginar primeiro a música e não só escrever a música com uma guitarra acústica e a cantar algumas letras. Porque no primeiro álbum era mais isso que eu fazia, pegava uma progressão de acordes e inventava qualquer coisa que depois produzia de outra maneira na fase de produção e de gravação. Mas no segundo álbum foi mais pensar mesmo na composição como uma fusão de instrumentos e não só uma coisa que se pode tocar na guitarra acústica. Do primeiro ao segundo álbum é como todas as evoluções no que toca ao conhecimento de produção. Aprendi ainda mais técnicas de produção, mixing, whatever. E depois, claro, que tens o problema da autocrítica e, como és o único a fazer aquilo, não tens tipo o Rick Rubin no cantinho a fumar e a dizer-te que isto soa bem ou mal, portanto tens de saber discernir o que é que é soa bem ou mal.
T: E quem foram os teus principais apoiantes, tanto emocionalmente como profissionalmente?
I: Eu gravo tudo no meu quarto, em casa. Em termos de apoio emocional… não sei, o apoio emocional é uma coisa muito abrangente. Podes ter apoio emocional, mas não ter apoio emocional diretamente acerca daquilo que estás a produzir no momento. Esse não era o caso, porque as coisas que eu fazia não mostrava a ninguém e não procurava sequer mostrar. O apoio emocional era só estar bem a priori, antes de sequer de fazeres música, que não era também o caso, mas nunca é. Logo, não, apoio direto acho que foi sempre muito de dentro. Isso é, obviamente, uma das partes mais frustrantes e mais difíceis de fazer arte como eu.
R: Tendo em conta a experiência que já tiveste, os vários estilos que já foste experimentando, tens ideia de algo que gostarias de fazer diferente mais à frente, ou algo que gostasses de explorar, ou isso é mais na altura?
I: Sempre que eu acabo um álbum, fico num período um bocado de desespero, a tentar descobrir o que é que vou fazer a seguir. Aconteceu depois do primeiro álbum, que achava que nunca mais ia conseguir escrever uma música, o que depois se tornou falso e até escrevi coisas melhores. Ainda assim, eu gosto da sonoridade do segundo álbum e da fusão de géneros que o segundo álbum tem e acho que o próximo álbum há de ser uma coisa minimamente parecida. Cada vez gosto mais de compor as coisas muito complexas e muito avant garde… Avant garde é pretensioso, mas muito unexpected. Gosto que as coisas sejam unexpected e não sejam tão imediatas. Portanto, em termos de géneros, acho que vai ficar mais ou menos pelo mesmo. Não tenho uma grande perseguição neste momento por uma coisa diferente.
R: E já agora, como é que conseguiste vencer essa dificuldade criativa que tiveste a seguir ao primeiro álbum? Foi só uma questão de tempo?
I: Precisas de tempo para aclarar um bocado as ideias e ouvir música de outras pessoas e perceber o que é que queres fazer, marinares naquilo que tu próprio fizeste e perceberes se gostas realmente daquilo ou não. Porque quando lanças um álbum tu odeias o que fizeste. É um tempo que tu tens de dar a ti próprio para um conjunto de coisas. Como foi o exemplo do primeiro para o segundo álbum, isso passa e eventualmente descobres o que é que queres fazer.
T: Já conseguiste ultrapassar este período de odiares o segundo álbum ou ainda não?
I: Eu não odiei o segundo álbum, por acaso. O primeiro odiei. O primeiro foi uma experiência um bocado péssima. No entanto, quando lancei o álbum foi um bocado surreal, visto que já tinha passado a fase de ficar nervoso. No segundo álbum já não houve quaisquer questões de nervos ou de ansiedade acerca da qualidade do álbum em si, porque já tinha tido boas reações ao primeiro e já estava mais estável no que toca às expectativas. Porém, nunca cheguei a odiar o álbum. O tempo de perceber se o álbum é bom ou não, acho que não foi tão requisitado. Agora é só o mesmo tempo de descobrir o que é que quero fazer a seguir, que também já está mais no fim.
T: Desde o lançamento do último álbum, já apareceu alguma influência nova, algum género, algum artista que te tenha cativado, como se calhar os Black Country, New Road ou os TTNG te cativaram?
I: Este ano tenho andado a ouvir muito Swans e muito rock experimental, avant-prog… Estou muito numa fase de ver o que é que existe fora dos standards e do que é possível. Se bem que Swans é a resposta clássica do gajo que quer ser pretensioso. Óbvio que também existem cenas de post-rock, tipo os Godspeed You! Black Emperor, mas isso já ouvia. Tenho ouvido Maruja também, que é uma banda também do Reino Unido.
T: Como é que têm sido os teus concertos desde o lançamento do álbum?
I: O concerto no Musicbox foi espetacular. Estava lá imensa gente e deu para partilhar um bocado a experiência e a reação das pessoas em relação ao álbum. Se bem que é sempre um bocado chato ter a barreira internacional, porque muito do meu público o é, então, obviamente, nestes momentos só posso ter a reação do público de cá. Mas foi ótimo, e transpor as músicas para o ambiente ao vivo também foi ótimo. A banda que eu formei para esta iteração tem uma sinergia ótima e temos relações ótimas . Por isso foi e tem sido uma experiência espetacular.
R: Como é que formaste o grupo com quem tocaste ao vivo?
I: Dois dos elementos são amigos meus integrantes dos Dream People, uma banda com que eu toquei no ano passado, no MusicBox também. Outro é o meu melhor amigo, por isso foi fácil. O saxofonista é amigo do baixista, por isso foi por aí. Foi fácil agregar o pessoal.
T: Não lês nada do RateYourMusic ou do AOTY. Porque é que não gostas de ver?
I: Era mais no primeiro álbum, porque era muito mais inseguro e uma opinião era sempre muito mais relevante do que a minha própria auto-estima acerca daquilo que tinha feito. Mas agora, e também como há muito mais reviews e muito mais pessoas a consumir… Não sei, também é muito mais difícil ler tudo. Mas a maior parte das vezes tento não ler porque, lá está, eu tenho muitas opiniões más, na perspetiva de se os artistas que eu ouço lessem o que eu penso provavelmente teriam uma reação adversa, no sentido de que não é isso que eu queria quando compus isto. Acho que não há uma avaliação, não válida, mas justa para aquilo que eu queria. Portanto, acho que é uma relação que eu espelho, que eu tento espelhar um bocado quando sou eu a fazer música. A reação de uma pessoa não é universal e não é algo que se deve levar a peito ou deve-se transpor para aquilo que se faz a seguir.
R: Ok, voltando um bocado atrás, às origens. Foi por escolha que fizeste tudo sozinho ou querias estar numa banda?
I: Não, não, foi por escolha. No que toca a criatividade eu sou bastante controlador e sou bastante individualista. Óbvio que se perguntarem às pessoas com quem eu trabalho em banda neste momento, não sou assim. Na banda, depois das coisas estarem feitas, não sou assim. É mais na criação. No processo criativo eu sou um control freak. Mas sim, é assim que eu gosto de compor e de criar. E também, obviamente, que um puto em Faro não tem grande maneio para fazer uma coisa sem ser assim.
T: Disseste que a língua portuguesa não é a ideal para expressar o que queres dizer com a tua música. Porquê? Devido a um maior alcance?
I: Eu sou uma pessoa que se distancia muito daquilo que sente ou que exprime. Então, óbvio que não cantar na língua materna é uma espécie de distanciamento. E também tem muito a ver com a questão de alter ego, e, pronto, sentires-te um bocado exteriorizado de ti próprio quando estás a cantar. Eu consumia muito mais música anglo-saxónica do que música portuguesa, por isso também, em termos de influências era o que eu ouvia, logo, era o que eu queria reproduzir. Mas não tinha a ver com querer alcance, isso é só um resultado, não é uma ambição.
R: Nós sabemos que o cinema tem uma importância grande na tua arte, podes-nos falar um bocado sobre isso e como é que o pretendes incorporar nela?
I: Arte é arte. Mesmo quando tu fazes a tua própria arte, estás a fazer uma transposição de todos os estímulos que tiveste ao longo da tua vida. Isso inclui cinema, música, literatura, tudo. Eu acho que até no primeiro álbum há uma música ou duas que têm referências a filmes. Acho que na “Light Years Away” há uma referência ao “Cinema Paradiso”. Nem que seja uma cena de um filme inspirar-me a escrever algo, uma parte de uma música, ou mesmo só as imagens inspirarem-me tematicamente. Portanto, o cinema sempre foi e sempre será uma inspiração para a minha transposição na arte. Isso é indiscutível.
T: Quais são os filmes que te influenciam mais, que mais queres invocar na tua arte?
I: Há filmes que têm muito a ver com os temas que eu próprio falo e que obviamente me inspiraram. “It’s Such a Beautiful Day”, “The Face of Another”, “Solaris”. O “Solaris” tem muitos paralelos com o meu último álbum, por exemplo. Filmes assim meio essencialistas, meio emocionais e muito introspectivos são sempre coisas que me influenciam muito diretamente. Filmes de ficção científica especialmente.
R: Queremos saber um bocado sobre os teus novos objetivos. Pretendes escrever novas músicas e juntares-te a uma editora? Existe algum festival em que gostarias especialmente de tocar?
I: Não é uma coisa que esteja muito no teu controle. Isso é uma coisa que vem a ti e não és tu a procurar. O meu objetivo sempre foi ser suportado por uma editora e ter as contas pagas pela música. Não são objetivos para os quais trabalhe. O trabalho está feito, o resto não és muito tu que controlas. Quanto a festivais, gostaria de tocar no Glastonbury e no Paredes de Coura.
T: Queria te perguntar se tens algumas recomendações, bandas ou álbuns que aches que as pessoas devem ouvir?
I: Olha, já que isto é uma cena portuguesa, Bruno Pernadas. Acho que os portugueses não dão o valor suficiente ao Bruno Pernadas. Lá fora… Maruja. É uma banda bastante desconhecida, neste momento. Newfound Interest [in Connecticut] também é muito desconhecido. Há um álbum de música clássica que eu gosto muito, que é o “Tabula Rasa” do Arvo Pärt. Acho que é um álbum que toda a gente devia ouvir. É o meu álbum favorito de música clássica e dos meus álbuns favoritos de sempre.