A memória do passado que grita: Ainda Estou Aqui

Autoria: Maria Alves (LEQ)

Ainda Estou Aqui vence o Óscar de Melhor Filme Internacional, trazendo ao Brasil — e ao resto do mundo — não apenas um prestigiado prémio, mas também a responsabilidade de preservar a memória em tempos onde o passado parece cada vez mais distante, os olhos recusam-se a ver e nos ouvidos ecoa apenas o ódio, este reconhecimento surge como um lembrete poderoso da importância de não esquecer.

A 97ª cerimónia de entrega dos Óscares ocorreu no passado dia 2 de março, e um filme em língua portuguesa venceu este prestigiado prémio, na categoria de Melhor Filme Internacional. A excelência cinematográfica desta obra de Walter Salles foi amplamente reconhecida, já que mesmo antes de ter vencido a estatueta, vários veículos de comunicação e críticos de cinema aclamavam a produção. São exemplos a revista Variety que enalteceu a carga dramática da obra [1], ou a Deadline Hollywood que descreveu o filme como uma “celebração brasileira”, exaltando a interpretação de Eunice, personagem principal, por Fernanda Torres [2].

O filme trata-se de uma adaptação da biografia de Marcelo Rubens Paiva com o mesmo título, onde o autor conta a história da sua mãe, Eunice, juntamente com as memórias da sua infância, ao narrar o desaparecimento do seu pai, Rubens Paiva, engenheiro civil e político brasileiro no período da ditadura militar. 

Inicialmente, a obra foca-se na vida quotidiana da família, vista por muitos como perfeita. Eunice, Rubens e os seus cinco filhos vivem pertíssimo da praia no Rio de Janeiro, gostam de fazer jantares e almoços para amigos e familiares, onde dançam e cantam ao som de música popular brasileira. 

Deste modo, de uma forma leve e equilibrada, antes de destacar a personagem principal, Eunice, Walter Salles procura, primeiramente, dar a conhecer Rubens Paiva e as suas relações com os seus amigos, filhos e esposa, abrindo um panorama para as suas vivências e para a sociedade brasileira da década de 70.

Há também um foco na situação política do país, quando Vera, a filha mais velha do casal, é parada pela polícia juntamente com os seus amigos. A cena contém uma elevada carga emocional, revelando uma abordagem policial desumana, sublinhando o preconceito e abuso de autoridade da época.

É aqui que a alegria quase palpável da família Paiva começa a ser dilacerada, sendo que o golpe final ocorre quando agentes do Centro de Informações de Segurança (CISA), um órgão militar de inteligência da Força Aérea Brasileira, aparecem à porta da casa da família e levam Rubens Paiva sob custódia para um interrogatório [3]. 

Descalça no momento em que os oficiais arrancam o seu marido de casa, Eunice parece sentir a alegria pela última vez ao tocar na madeira. A partir desse instante, o vazio é trabalhado de diversas formas ao longo da obra. Os planos passam a enquadrar os personagens de maneira fragmentada, chegando por vezes a cortar as suas figuras. Os amigos da família afastam-se, Eunice isola-se na própria dor, os olhares longos e a falta das palavras reinam, e a casa da família torna-se cada vez mais vazia, os sons ecoam e a respiração das personagens torna-se audível.

O mesmo ocorre na banda sonora, que marca apenas os momentos de angústia, seguida por silêncio, provocando um sentimento de desconforto. Deste modo, o vazio não é só ausência, mas uma presença dolorosa, gritando silenciosamente que a memória não se apaga, sinalizando o próprio vácuo existente na história verídica: Rubens não volta a casa, não há um funeral e, por muitos anos, não há certidão de óbito [4].

Assim, a família inicialmente estruturada, social e economicamente estável entra num clima de angústia e medo. A falta de informações oficiais sobre o paradeiro do marido e o sentimento de incerteza corroem a rotina da família e fazem com que o desespero ganhe espaço no coração de Eunice, que, por sua vez, se esforça para o esconder dos filhos.

A atuação da Fernanda Torres faz o improvável e preenche esta ausência, num mesclado de inquietude e impotência de quem não sabe como se erguer contra um sistema de repressão. 

No entanto, Eunice é levada para prestar depoimento com uma das suas filhas. O filme não retrata qualquer violência explícita, mas sim o peso psicológico e o clima de ameaça durante os dias que Eunice passou encarcerada. Assim, toma forma um novo traço na protagonista, que deixa o desespero e assume um orgulho ofendido, procurando proteger a sua família e acabando por abdicar do futuro que tinha planeado com o marido.

Eunice tenta preencher a lacuna que lhe foi imposta, movida por uma força interior que a torna determinada a resistir perante a vida, o que é visível na cena onde se banha após a sua prisão. Retratada como um momento de purificação emocional, em que a protagonista tenta não apenas limpar o corpo, mas fazer uma espécie de desinfecção psicológica, afastando o peso do sofrimento, mesmo que temporariamente. 

Outro exemplo, passa-se numa gelataria, onde vai com os filhos, em busca de uma sensação de normalidade antagónica à violência da situação política do país. A gelataria torna-se, deste modo, um símbolo de resistência, onde Eunice tenta preservar a sua humanidade e a inocência dos seus filhos, remetendo aos tempos de normalidade da sua vida.

A interpretação distinta de Fernanda Torres carrega o filme em momentos dramáticos, fazendo jus a Eunice Paiva, que é tida como um dos símbolos de resistência à ditadura militar. Uma mulher que resistiu, voltou a estudar e tornou-se uma advogada prestigiada no que toca aos direitos indígenas [5]. 

É importante ressaltar que a banda sonora do filme torna-se um ato de resistência cultural, revigorando as vivências da época de ditadura, e a tentativa de apagar a memória dos desaparecidos e das vítimas de repressão. Músicas como “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” de Erasmo Carlos, destacam o sentimento de perseverança e suportam indignação e a necessidade de mudança face aos tempos conhecidos como os “anos de chumbo”.

Fotografia símbolo que mostra politização por parte da classe artística brasileira, que saiu em protesto contra a ditadura militar. Na imagem temos Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker. Fonte: Memórias da Ditadura

A importância de um filme de língua portuguesa ser reconhecido em premiações tão importantes é imensurável, promovendo a visibilidade do cinema lusófono num contexto global e um certo intercâmbio cultural. Além do filme tratar de assuntos sensíveis e extremamente relevantes, a sua visibilidade oferece um olhar sobre o panorama da ditadura militar brasileira (1964-1985) e destaca as vidas impactadas pela mesma. Este reconhecimento tem um papel importante na promoção da reflexão sobre a responsabilização do estado por abusos do passado, sublinhado a importância da justiça, da memória e da reparação, não só para as vítimas, mas também como base para uma sociedade mais democrática. Para além da sua dimensão política, o filme assume uma forte relevância histórica e cultural, funcionando como um instrumento de preservação da memória histórica, num cenário onde há a tentativa de negação de certos episódios da ditadura, não só no Brasil, como no mundo, abrindo portas para as novas gerações entenderem as diversas esferas culturais, fomentando o interesse pela história, a importância da democracia e garantindo a memória dos desaparecidos e vítimas de regimes autoritários.

Manifestação contra a ditadura militar, muitos estudantes reunidos na praça da República com cartazes e faixas. Fonte: Memórias da Ditadura

O filme foi também produzido num Brasil politicamente instável, marcado por dificuldades financeiras e políticas que dificultavam a produção de um filme de caráter crítico e promoveram o corte de verbas para cultura [6]: “[O filme] demorou cerca sete anos porque, durante quatro, o país se apoiou na extrema direita, e seria impossível filmar durante esse período. O filme é parte do retorno da democracia ao Brasil”, comentou Salles numa entrevista à CNN [7]. 

É importante enfatizar que este filme apenas existe, devido à Comissão Nacional da Verdade, criada pelo governo de Dilma Rousseff para investigar os crimes cometidos pela ditadura militar, incluindo os casos de tortura, desaparecimentos e repressão [8]. Foi graças ao trabalho desta comissão que casos como o de Rubens Paiva foram mais amplamente reconhecidos e discutidos, criando um novo paradigma de busca pela verdade e reparação histórica. E devido à Lei dos Desaparecidos, sancionada em 1996 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi permitido conseguir  a certidão de óbito de Rubens Paiva, 25 anos depois do seu desaparecimento [4].

Em 2019, o ex-presidente, Jair Bolsonaro, cuspiu na estátua de Rubens Paiva, algo que se tornou um momento emblemático da procura da extrema direita de minimizar a história da ditadura e deslegitimar as vítimas e heróis da resistência contra o regime militar [9]. Bolsonaro e a sua retórica reafirmavam uma narrativa revisionista da história onde os crimes cometidos pela ditadura eram suavizados ou mesmo justificados. 

Uma parte significativa da sociedade contemporânea tem vindo a demonstrar uma facilidade para esquecer o passado, e rejeitar, a memória das vítimas de regimes autoritários. Há uma tendência para justificar a repressão associando-a a uma suposta “necessidade” da ditadura. Talvez porque seja mais fácil negar ou apagar as feridas do passado do que enfrentar a sua realidade com o sofrimento que lhe é embutido.

Em suma, Ainda Estou Aqui, não é apenas uma obra de arte inteligível, mas um arrebatamento político de importância. O filme ressalta a fragilidade da democracia, o ódio crescente e a tentativa de revisão do passado, enfatizando a importância de não esquecer e a construção de uma memória coletiva sólida. O ato de resistência inerente ao filme começou antes da sua visibilidade global, quando ainda estava a ser produzido, sendo um estalo na cara da censura e polarização política, levando a retificação da certidão de óbito de Rubens Paiva para morte “violenta” e “causada pelo Estado brasileiro” [10].

Referências:

[1] Variety sobre Ainda Estou Aqui. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[2] Deadline sobre Ainda Estou Aqui. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[3] Informações sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[4] Reconhecimento da morte de Rubens Paiva. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[5] Informações sobre a vida de Eunice Paiva [Acedido pela última vez a 2/5/2025]

[6] Decaimento da verba para a cultura no governo de Jair Bolsonaro. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[7] CNN sobre Ainda Estou Aqui. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[8] Relatório sobre a Comissão da Verdade. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[9] Notícia sobre a cusparada de Bolsonaro do busto de Rubens Paiva. [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

[10] Correção da certidão de óbito de Rubens Paiva [Acedido pela última vez a 6/4/2025]

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