Estado Novo vs. Estudantes: o Desporto na luta estudantil

Autoria: Beatriz Dinis (LEAer), Tomás Faria (LEMec), Vasco Lourenço (LEFT)

“Fado, futebol e Fátima”, um lema associado a Salazar e à sua estratégia de controlo, é afinal desmentido por alguns historiadores atuais. Pensa-se que Salazar não terá impedido a saída de Eusébio, nem terá planeado utilizar o futebol como meio de doutrinação, pelo menos inicialmente. À medida que o futebol se enraíza na cultura nacional, ganha força também no palco das lutas políticas, não apenas para Salazar, que o utiliza como veículo da propaganda fascista, mas também do lado da oposição. Nas Associações de Estudantes, o sucesso das equipas desportivas garantia alguma autonomia perante o regime. Nos eventos desportivos, as vontades estudantis extravasavam para os recintos, como aconteceu na final da Taça de Portugal em 1969, onde a verdadeira disputa foi travada entre os estudantes e o regime.


O Desporto e os regimes fascistas

No começo dos anos 30, por toda a Europa, chegaram ao poder vários governos fascistas. O desporto era uma forma dos recém-eleitos governos cimentarem o seu poder. Porém, enquanto na Alemanha Hitler se aproveitou do desporto, nomeadamente através da receção dos Jogos Olímpicos, em 1936, em Berlim, para popularizar o regime e normalizar as ideologias racistas, antissemitas e supremacistas, Salazar continuava a olhar para o desporto como uma forma de lazer, sem lugar para o atleta no conjunto de profissões que acrescentavam valor à Pátria. Apenas 19 atletas portugueses marcaram presença nesses Jogos [1].

Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de 1936 (fonte desconhecida).

As duas tríades salazaristas: Pátria, Deus, Família e o mito dos 3 F’s

A tríade filosófica Salazarista: Pátria, Deus, Família encapsula tudo aquilo que Salazar considerava de máxima importância. Esta máxima do que deveria ser a vida de qualquer cidadão, levou o povo português a procurar novas formas de se exprimir sem colocar em risco o cumprimento das austeras medidas impostas pelo regime. É neste contexto que florescem outras alegrias do povo: o Fado, Fátima e o Futebol, os 3Fs, cujo crescimento é frequentemente atribuído ao Estado Novo. Ainda hoje, a música, a religião e o futebol são elementos culturais marcantes em Portugal. Desde o reconhecimento do fado como património mundial, à vinda do papa e às jornadas mundiais da juventude, assim como a conquista de troféus internacionais por parte da seleção nacional, há uma sensação inegável de identidade associada a este conceito popular dos 3 Fs.

Diz-se que foi Salazar que analogou o “pão e circo” a esta ideia, servindo-se dela com o intuito de manter o povo sob controlo, submisso e entretido. Contudo, alguns historiadores afirmam que  Salazar nada teve a ver com a invenção dos famosos 3 Fs, nem com o seu crescimento. O surgimento de figuras mediáticas como Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira nunca foi parte de uma estratégia direta do regime, embora Salazar se tivesse apropriado destas figuras mais tarde. Houve, sim, um certo oportunismo por parte da máquina de propaganda do Governo, por exemplo, na difusão das conquistas internacionais do Sport Lisboa e Benfica. O jogo da final de 1961 chegou a ser passado 7 vezes por dia. Pode dizer-se que o “Fado, Fátima e o futebol” cresceram apesar do regime, não graças a ele [2].


Eusébio e o clube do regime

A carreira de Eusébio é marcada pelos 15 anos que passou no Sport Lisboa e Benfica. O Pantera Negra teve ofertas para jogar internacionalmente, após as conquistas dos troféus internacionais (1960/61 e 1961/62), que não chega a aceitar. Mais tarde, revela que “Salazar entrou na minha vida quando inviabilizou a transferência, com o argumento de que eu era património do Estado” [3].

O serviço militar era obrigatório para todos os homens portugueses e Eusébio, nascido em Moçambique, então colónia ultramarina portuguesa, era cidadão português. Fica a dúvida se foi esta obrigação que impediu o jogador de ser transferido para a Juventus, em 1963, ou se Salazar considerava mesmo o jogador como propriedade do Estado [4].


Evolução do desporto sob o regime

Salazar, na sua visão puritana do cidadão português, considerava o desporto como uma prática inócua e pura. Na conceção do ditador, a competição retirava pureza à atividade desportiva e a observação da atividade desportiva como espetáculo tinha o mesmo efeito; o desporto não deveria ser um espetáculo, mas uma limpeza espiritual.

Em 1933, realizou-se o I Congresso de Clubes Desportivos, no qual se reuniram as figuras mais importantes do panorama desportivo português, com o principal intuito de despertar o interesse do regime para os possíveis benefícios da associação a este setor. Raul de Oliveira, diretor do jornal Os Sports e organizador do congresso, afirmou no discurso de abertura:

“O Sr. Ministro da Instrução (…) precisa, também, de estádios, piscinas, e ginásios. Porque no dia em que Portugal tivesse uma população média de sábios e uma minoria de homens válidos para a luta em campo raso, a Pátria estaria irremissivelmente perdida. O Sr. Ministro da Guerra (…) precisa de homens fortes, sãos, destros, acostumados à luta, apetrechados da coragem que só a consciência na própria força pode dar. Esses homens encontrá-los-á nas fileiras desportivas. (…) o desporto nacional constitui uma força de propaganda capaz de atingir os mais latos objetivos. Ao Sr. Presidente da República, Chefe de Estado, supremo magistrado da Nação, interessa que o Povo seja forte, para que continue a cumprir a sua missão civilizadora e a afirmar a vitalidade duma raça que soube dar leis ao Mundo e que terá de marear sempre o seu lugar no concerto das nações.”

No fim do congresso, os representantes foram recebidos por Salazar, onde apresentaram a proposta final: a construção do Estádio Nacional.

Diário de Lisboa, 1933.

Era o ano de 1944 e dava-se, finalmente, a inauguração do estádio. Alberto Freitas, redator do jornal Os Sports, intitulou Salazar como “O primeiro desportista de Portugal”, comparando as características de um atleta com as do chefe de uma nação. Este elogio bajulador não é coincidência: não só a comunidade desportiva devia a existência do estádio ao governo, como o próprio jornal fazia parte da mesma empresa a que pertencia o Diário de Notícias, que funcionava sob a máquina de propaganda do governo.

Esta inauguração aconteceu em plena II Guerra Mundial e, embora Portugal não fosse  participante ativo no conflito, atravessava uma profunda crise e o povo passava fome. Mas isso não abalou a determinação de Salazar de celebrar a inauguração grandiosamente [5].

Inauguração do estádio nacional, 1944 (fonte desconhecida).

Não é de admirar que, enquanto que no resto do mundo a profissionalização do desporto avançava a passos largos (exceto, obviamente, durante a guerra), Portugal ficava para trás. O Comité Olímpico Português chega a financiar conferências em 1942 com o tema “profissionais e amadores”, mas, note-se,  enquanto parte dos “amadores”. A grande maioria dos participantes das conferências partilhava a opinião do Comité, defendendo a pureza do desporto amador e dizendo sobre o “verdadeiro desportista”: “não é espectador; é actor”. O amadorismo era, segundo os órgãos mais próximos do governo, mas também dos membros de ótica mais conservadora no que toca ao desporto, a principal qualidade da atividade desportiva.

As discussões continuaram ao longo dos anos, mas tornou-se evidente para todos, mesmo os que se recusavam a aceitar o progresso do desporto, que a profissionalização era absolutamente necessária. Esta foi finalmente reconhecida pelo Estado Novo com a aprovação da Lei n.º 2104 de 30 de Maio de 1960, que aceitava a prática do futebol como prática remunerada [6].


O Desporto Estudantil na AEIST

O desporto amador era realmente determinante em diversas modalidades. De tal maneira que as equipas das Associações de Estudantes (AAEE) eram reconhecidas a nível nacional, sendo comum disputarem e até ganharem competições nacionais. 

A tradição desportiva na Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) faz 100 anos no presente ano. Fundado em 1924, o Grupo Desportivo da AEIST sofreu inúmeras alterações com o passar dos anos, moldando-se também à tradição desportiva dos estudantes que acolheu. Em 1945, contava com várias modalidades: atletismo, futebol, andebol, voleibol, rugby, natação, pólo aquático, tiro de guerra, esgrima, ping-pong e xadrez. Mais tarde, surgem ainda outras modalidades como judo, fortemente frequentado, e referência na cidade de Lisboa. As equipas chegaram a disputar lugares no desporto federado, tendo a equipa de vólei vencido 12 vezes o campeonato nacional e a equipa de rugby conquistado a Taça de Portugal 3 vezes, no período anterior ao 25 de Abril [7].

O reconhecimento nacional das equipas académicas era um dos pilares que sustentava a oposição das AAEE ao regime. Para além de todo o controlo que as AAEE tinham sobre a vida universitária, como é exemplo a gestão da cantina e das residências no caso da AEIST, a força das equipas desportivas era também um importante meio usado pelos estudantes para mover a sua influência, como sucedeu em Coimbra.


Académica vs Benfica: uma Final de Protesto

Equipa da Académica antes da final disputada com o Benfica (22 de junho de 1969). Fonte: Grupo Global Media.

A crise académica em Coimbra começou a 17 de Abril de 1969, quando um estudante interrompeu o então Presidente da República, Américo Tomás, levando à sua detenção por parte da PIDE. Às 11 horas da manhã, Américo Tomás chega a Coimbra, acompanhado pelos Ministros das Obras Públicas e da Educação, Rui Sanches e José Hermano Saraiva, com o propósito de inaugurar o novo edifício das Matemáticas. Na então chamada sala D. Henrique, hoje sala 17 de Abril, o presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC), Alberto Martins, ousou pedir a palavra “em representação dos estudantes da Universidade de Coimbra” que exigiam uma reforma no ensino. Quando recusado o seu pedido, sendo a palavra dada ao Ministro das Obras Públicas, os estudantes iniciaram um protesto, exigindo a oportunidade de falar, levando a que a comitiva saísse à pressa. Ainda assim, Alberto Martins subiu para cima de uma cadeira e discursou para os estudantes, expondo os problemas do ensino em Portugal e “a necessidade da democratização” [8]. Nessa noite, é preso pela polícia política, sendo libertado por volta do meio-dia do dia seguinte. 

Dias depois, os dirigentes da AAC foram suspensos e, em Assembleia Magna, os estudantes decretaram o luto académico e greve às aulas e aos exames, o que poderia significar o fim das bolsas de estudos para os estudantes que beneficiavam delas ou até uma incorporação forçada nas forças armadas e a partida para a Guerra Colonial. Apesar disso, a adesão foi quase unânime e a Universidade é fechada, numa tentativa de restabelecer a ordem e disciplina [9]. Seguiram-se meses de protestos, que chegaram ao futebol e à final da Taça no Jamor entre a Académica de Coimbra e o Benfica, jogada a 22 de Junho do mesmo ano.

O grupo desportivo de futebol da Associação, conhecido como a Académica de Coimbra, aderiu à causa. Depois de proibidas as manifestações de protesto como as já realizadas em jogos anteriores (braçadeiras negras ou adesivos no emblema do equipamento), a equipa decidiu entrar a passo, com a capa académica aberta e caída em sinal de luto. A equipa do Benfica acompanhou o ritmo dos adversários, levando muitos a supor a sua solidariedade com a luta estudantil. No exterior, a Guarda Nacional Republicana circundava todo o recinto a cavalo. Já no interior, os agentes encontravam-se “de G-3 em punho e cara de poucos amigos” [10] e havia agentes da PIDE à paisana, de modo a intimidar os estudantes e dissuadi-los de possíveis atitudes de protesto. No entanto, a presença das forças de autoridade não foi suficiente para abalar a luta dos estudantes, que conseguiram esgueirar cartazes com mensagens de ordem como “Universidade Livre” ou “Viva a Liberdade”, que percorreram todo o estádio, passando inclusive pelas mãos dos adeptos do Benfica que, espontaneamente, se juntaram ao protesto. Alguns estudantes discursaram pela reforma do ensino e pela liberdade, levando a que sete acabassem presos durante o jogo. 

A final terminou com 2-1 para o Benfica, vitória garantida por Eusébio no prolongamento. Rompendo a tradição, nem o Presidente Américo Tomás, que era responsável por entregar a taça ao campeão, nem o primeiro ministro Marcello Caetano, assistiram ao jogo. Numa tentativa de abafar o protesto do qual a final foi palco, a imprensa foi alvo de censura e, pela primeira vez, o jogo não foi transmitido na televisão. Apesar da derrota, a Académica saiu de cabeça erguida, pois o mais importante tinha sido cumprido. Como relatado no Diário de Lisboa, “Palavras que iam para além do próprio jogo. Era outra Taça. Antes e durante  o jogo, a festa foi de Coimbra. No final foi de ambos. Os benfiquistas (…) vestiram as camisolas negras da Académica. Como que a simbolizar a ambição estudantil expressa num grande e eloquente cartaz”. À RTP, três antigos estudantes relembram ainda que, na volta de honra, José Augusto, jogador do Benfica, ofereceu o troféu a Vítor Campos, da Académica, que o levantou em direção aos estudantes presentes no Jamor [11]. 

Referências:

[1] Nagorski, Andrew. Hitlerland: American Eyewitnesses to the Nazi Rise to Power. New York: Simon and Schuster, 2012

[2] O mito dos três efes

[3] Memórias de Eusébio: «Merecíamos ter sido campeões do Mundo», Record.

[4] “Salazar não deixou Eusébio sair de Portugal… mito ou realidade?”, SapoDesporto

[5] DRUMOND, Maurício. Salazar, O Estádio Nacional e o Desporto no Estado Novo Português. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 2, 2023.

[6]  Rahul Kumar, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa: “A pureza perdida no desporto: futebol no Estado Novo”

[7] Tiago de Oliveira, Luísa: “O Activismo Estudantil no IST (1945-1980)”, Edições Fénix.

[8] “EM 1969, A ACADÉMICA DEU AOS ESTUDANTES PALCO PARA PROTESTAR”, O Futebólogo: O Futebologo, «Em 1969, a Académica deu aos estudantes palco para protestar»

[9] Carrapatoso de Lima, Rodrigo: “ ‘Futebol: mais do que chutar…’: a final da Taça de Portugal de 1969 e os estudantes de Coimbra”, Ludopédio: O Ludopédio, «”Futebol: mais do que chutar…”: a final da Taça de Portugal de 1969 e os estudantes de Coimbra»

[10] Lourenço, Gabriela; Costa, Jorge; Pena, Paulo: ”Grandes Planos: Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974”, Âncora editora, Associação 25 de Abril.

[11] Geraldo, Inês: “Taça de Portugal 1969: o futebol como arma de protesto”, RTP:

RTP Desporto, «Taça de Portugal 1969: o futebol como arma de protesto»

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