Muitas são as questões que este período atípico tem levantado. Estarão os nossos governantes prontos para o pós-pandemia? E o próprio SNS? Será que se comprar mais 20 rolos de papel higiénico de folha tripla ganharei imunidade? Tudo excelentes questões que se tornam triviais em comparação com a derradeira incógnita do problema: QUEM culpar pelo atual cenário.
Autoria: Pedro Rodrigues (MEQ)
“Esta juventude é mesmo irresponsável! Estamos em plena pandemia e passam a vida no café e na noite com os amigos! Pensem nos vossos avós!” ou então ainda “Os idosos acham que são invencíveis porque foram vacinados contra a gripe. Tudo sentado na esplanada com o nariz por fora da máscara! Depois espantam-se com os obituários nas notícias!” Se ao lerem isto sentiram um déjà-vu, acreditem que não são os únicos.
Entre outros fenómenos sociológicos, a pandemia trouxe consigo o surgimento de um conjunto de novos estereótipos que visam culpar determinadas faixas etárias pelo crescente número de casos diários.
Mas será que estes ataques à integridade moral de milhões de indivíduos não são baseados numa generalização alicerçada em preconceitos que sempre existiram, mas que só agora vieram ao de cima?
A psicologia evolutiva postulou que a capacidade de menosprezar a importância intrínseca dos indivíduos com base em características externas está codificada no nosso ADN [1], diferindo somente o modo como interiorizamos essa mesma habilidade ou como agimos perante ela. Contudo, a pandemia veio exacerbar este já enraizado problema e torná-lo mais explícito. Metaforicamente, uma percentagem considerável da população saiu à rua para proclamar em plenos pulmões a sua inocência, projetando os seus inúmeros lapsos e incumprimentos das normas de segurança em determinados grupos de indivíduos que se tornaram os bodes expiatórios para os delitos de alguns. Salvaguardar a nossa integridade e simultaneamente denegrir a imagem de certas camadas sociais passou a ser tão banal que aborrece. E se outrora culpávamos os imigrantes, refugiados, membros da comunidade LGBT ou mesmo o género feminino pelas quezílias sociopolíticas do nosso país, o status quo alterou-se radicalmente para se tornar numa constante perseguição aos extremos da pirâmide etária.
Analisando esta questão cronologicamente, o primeiro estereótipo a surgir pode ser descrito, de uma forma um pouco pejorativa, como o velho irresponsável. No que parece ser um passado distante, muitos foram os casos noticiados de cidadãos idosos que abertamente menosprezavam esta nova realidade. Fosse isto derivado de uma crença naïve do aparente caráter análogo de gripe vs COVID, ou de um completo desinteresse pelo seu próprio predicado por terem idade avançada, é inegável que não faltaram argumentos para justificar estes comportamentos.
Comentários desta natureza foram, aliás, extremamente pertinentes como forma de autoincriminação, e uma aparente justificação para segregação social, por parte de uma camada populacional que historicamente sempre foi desprotegida e com uma importância questionável no discurso nacional. E os números falavam por si. Com surtos a brotarem que nem cogumelos nos lares e centros de dia, em paralelo com taxas de mortalidade elevadíssimas comparativamente às restantes faixas etárias, foi esta amálgama de fatores que permitiu recriminar, por meses a fio, as ações de 2,2 milhões de portugueses com idade superior a 65 anos [2].
Mas passada esta fase de incessante associação da classe mais idosa ao parasitismo e à propagação do vírus, as atenções viraram-se, quase que num ápice, para a ponta oposta do espetro. Surgiu então o estereótipo do miúdo rebelde, característico da juventude contemporânea e dita “desregulada”. Subitamente os jovens passaram a estar no centro de inúmeras reportagens e artigos de opinião que mostravam a sua falta de bom senso e preocupação pelo bem alheio como se fosse uma característica inerente à sua tenra idade. Desde o aparecimento de clubes noturnos clandestinos, a festas organizadas pelas redes sociais onde se juntavam largas dezenas de adolescentes, não faltaram exemplos para comprovar o desdém demonstrado por esta faixa etária.
E se antes do começo do novo ano letivo os jovens eram recebidos nos transportes públicos e espaços de lazer com punhais e adagas por parte das demais pessoas, atualmente, o conteúdo das represálias passou a ser pontuado por comentários passivo-agressivos dos que questionam a moralidade e segurança dos mesmos conviverem fora do espaço escolar.
Mas novamente o problema assenta na falácia da generalização precipitada onde, devido às ações de uma amostra não representativa de toda a população, assumimos pressupostos que tomamos como regra caindo numa repetitiva discriminação de faixas etárias inteiras. Pegamos em ideias pré-concebidas, que muitas vezes guardamos no canto mais recatado do nosso inconsciente, e criamos generalizações que são inerentemente falaciosas.
Isto porque ter a audácia de fugir a este paradigma, quebrar o ciclo vicioso de banalizar preconceitos, remar contra a maré de comentários sem fundamento, é um trabalho que foi considerado supérfluo face à situação de emergência mundial. Mas creio que esta caça aos gambuzinos já decorre há tempo suficiente. Queremos mesmo perpetuar a ideia de que a culpabilização generalizada é algo louvável, ou fazer o esforço que é requerido para nos impormos sobre as mentecaptas e afirmar que a idade não é o problema, mas sim a mentalidade de cada um?
[1] David M. Buss (1995) Evolutionary Psychology: A New Paradigm for Psychological Science, Psychological Inquiry,6:1,1-30,
No fundo, cada um de nós, independentemente da idade ou grupo etário, é responsável pelos seus actos e pelas consequências deles. Sempre foi e sempre será. Este contexto de pandemia apenas reforça mais este aspecto. Excelente texto.