A inevitável inquietude do ser

De onde vem o activismo ou como não podemos concordar com o que escreveu Sigmund Freud.


Autoria: Ana Lúcia Tiago*


Para Freud, no livro O Mal-Estar na Civilização, o propósito da vida humana é o de alcançar a felicidade, que define como ausência de dor e maximização de um sentimento de prazer. Freud propõe que o descontentamento da sociedade é inevitável e que este advém do nosso avanço civilizacional, já que são constrangimentos impostos pelas construções sociais que nos impedem de chegar à felicidade primordial. Na perspectiva de Freud, o avanço civilizacional está directamente relacionado com a diminuição da felicidade da sociedade e todos os esforços que possamos levar a cabo para tentar contrariar esta tendência são infrutíferos. Um pouco como Sísifo, condenado para toda a eternidade a carregar uma pedra até ao topo de um monte e a vê-la cair de volta ao ponto de partida sempre que atinge o cume, também nós estamos condenados a tentar alcançar a satisfação plena, apenas para compreender melhor o nosso descontentamento inevitável. Será então preferível ser como Cândido, personagem principal do livro homónimo de Voltaire, quando este diz que “é preciso cultivar a nossa horta” e esquecer as desilusões e as tarefas impossíveis impostas pela vida, preocupando-nos apenas com os nossos afazeres mundanos e pondo de lado preocupações com o bem geral? Será preferível nada fazer?

Façamos uma pausa. O Homem tende a procurar o prazer, mas o descontentamento é inevitável. O que significa, então, isto na prática? Assumamos, por absurdo, que chegada a um certo ponto, a civilização atingia a satisfação plena, o objectivo último do ser. O que se seguiria? A procura termina, não havendo mais razões para continuar a produzir esforços. A pedra fica para sempre no topo da íngreme colina. Será que viveríamos todos em próspera harmonia até ao fim dos tempos? Parece aborrecido.

Aceitando agora, ainda que desencorajadora, a ideia de que não podemos fugir à sentença de ter de recorrer a medidas paliativas como antidepressivos (literais ou figurados), para vivermos com o nosso inevitável mal-estar, podemos ver que essas medidas correspondem à razão por que o Homem age.  Toda a acção do homem, seja ela artística, científica, social ou política é devida à constante procura de um prazer inatingível e é por este ser inatingível que a acção humana não cessa. Pergunto então se será assim tão fatal esta condenação de Sísifo e se não será possível encontrar o prazer na própria acção.

Respondo assim à pergunta inicial: não é preferível nada fazer. E se vamos agir, que o façamos tendo em vista mais do que a nossa própria horta, primeiro porque, se assim não fosse, não faria sentido estar a reflectir sobre activismo e a tecer considerações sobre o futuro, como pretendemos fazer nesta edição do Diferencial. Segundo, porque me parece que a recente consciencialização a respeito de questões ambientais e sociais e as acções que dela advêm partem de um sentimento de descontentamento colectivo e de um desejo por um bem comum que transcendem as previsões de Freud. Foram e continuam a ser acções motivadas pelo descontentamento de um ou de vários indivíduos a catalisar eventos históricos e a mudar mentalidades políticas desde os primórdios da humanidade. Faz, portanto, sentido estarmos agora a assistir a uma vaga tão forte de acções de activistas por todo o mundo, movidos por causas cada vez mais consensuais, como a sustentabilidade, num grau de urgência proporcional ao avanço civilizacional. Que a inevitável inquietude do ser seja bem aplicada. Pode ser que um dia cheguemos à conclusão de que Freud estava errado.

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