Ativismo cerebral também conta

Ativismo (substantivo masculino)

  1. Atitude moral que insiste mais nas necessidades da vida e da ação que nos princípios teóricos.
  2. Propaganda ativa do serviço de uma doutrina ou ideologia.
  3. [Filosofia] Qualquer doutrina ou argumentação que privilegie a prática efetiva de transformação da realidade em detrimento da atividade exclusivamente especulativa.

Especulação (substantivo feminino)

  1. Investigação teórica em assunto doutrinal; exame; estudo; indagação
  2. [Comércio] Operação de resultados incertos e arriscados, mas de grande vantagem se for bem-sucedida.
  3. [Figurado] Engano, logro; exploração.

Fonte: dicionario.priberam.org

Autoria: Alina Chervinska


Quando a pensamento se torna confuso, uma abordagem pseudo-matemática vai longe. Por exemplo, as derivadas parciais são um recurso surpreendentemente útil na simplificação de um raciocínio que está constantemente a ser desviado de um encadeamento claro pela ação de demasiadas variáveis do problema.

Por isso, com o objetivo de estudar umas variáveis (ativismo e especulação), vamos fixar outras (especificando que tipo de ativismo e de especulação vamos abordar)  e ver a variação das primeiras apenas.

Premissa 1: Todo o ativismo está bem fundamentado e defende causas  reconhecidamente justas.
Premissa 2: A especulação é de caráter inquisitivo e não visa o engano ou o logro

Vamos à resolução.

Vencer o estado de repouso físico de um corpo não é algo que acontece espontaneamente: é preciso aplicar uma força – isso já Newton sabia. Da mesma maneira, sobrepor-se à comodidade da vida corrente ou ao peso da impressão de que o mal contra o qual se quer lutar é omnipresente e impossível de erradicar é, sejamos honestos, difícil e requer força de vontade.

Mas depois de ser feita a transposição desta barreira, a manutenção do ritmo é menos exigente: é como quando se quer muito intervir numa aula porque o tema é interessante mas tem-se vergonha e quando, por fim, se junta a coragem para intervir, durante resto da aula o embaraço já não existe e eras capaz de ter toda uma conversa argumentativa com o professor, afagando a tua recém-aparecida barba socrática.

E que sensação de triunfo sobre ti mesmo: que doce vinho, que divina melodia!

Nesta altura, revela-se a outra face da moeda da vontade ativa e fazedora: “Se eu fiz, então é praticável. Os outros só não fazem porque não querem ou porque têm preguiça ou porque não compreendem”. O tom de condescendência infiltra-se sorrateiramente e eleva o «Eu» alguns centímetros do chão. Já não preciso mais de sapatos – flutuo.

É preciso, então, vigiar a voz interior quando se pratica aquilo que se acha correto, com o constante risco de transformarmos uma coisa boa para a sociedade numa razão de desdém para com os outros. Tal como dizia o Bombarda sobre as leveduras expiatórias: “Todo o cuidado é pouco”.

É provável que as personagens mais facilmente desprezadas pelo ativista sejam os especuladores – seres cerebrais e reflexivos que muitas vezes veem o seu corpo apenas como meio de transporte para o seu cérebro. A exploração de diferentes possibilidades e cenários através do questionamento do que os rodeia é o seu modo de ação. É verdade que a indagação em tópicos sem um objetivo claro ou sem uma aplicabilidade evidente na nossa vida pode parecer um desperdício de tempo, mas é igualmente seguro afirmar que este espécime é essencial para a preservação de um nível de especulação saudável no ecossistema, uma vez que o solo especulativo pode, de facto, ser fértil.

Por exemplo, o monge austríaco Gregor Mendel (séc. XIX), quando polinizava com um pincel as ervilhas do seu jardim, para testar a ideia, baseada em atenta observação e uma boa dose de conjetura, de que certos traços físicos desta planta têm dominância sobre outros, provavelmente não previa a importância que o seu trabalho teria no futuro. Só décadas mais tarde é que a utilidade da sua pesquisa foi confirmada: ele tinha dado o primeiro passo no estudo da genética.

Vários escritores são também bons exemplos de especuladores e questionadores, especialmente aqueles que dão uma infusão de irrealismo às suas obras – transmitindo mensagens bem pertinentes através da indagação em cenários inventados. Podemos tomar o exemplo de Franz Kafka – escritor checoslovaco que, através dos seus trabalhos, chama a atenção para aspetos da sociedade que o abalam profundamente, como a impotência perante a burocracia exagerada e outras absurdidades da vida urbana. Ou o Haruki Murakami – escritor japonês que parece inspirar vida nas suas narrativas de realismo mágico, recostando-se depois para observar ele próprio o que é que as personagens vão fazer a seguir. Alguns dos seus temas mais acarinhados são a injustiça social e a responsabilidade pessoal.

Estas e outras pessoas podem não ter levantado o punho uma única vez para defender uma causa social – para o bem ou para o mal – mas provocaram uma comichão no fundo do crânio de muitas pessoas, o que tem o seu valor.

Como alternativa, existe sempre um modus operandi privado e discreto, em que não se anuncia abertamente a posição tomada mas ao mesmo tempo as decisões e ações são consistentemente guiadas pela bússola moral interna. Alguém pode querer optar por este repertório de ação se não gostar de confrontos, ou se estiver receoso de discursos extremados que possam sair da própria boca na tentativa de verbalizar convicções genuínas e interiormente justificadas. Afinal, e a título de exemplo, sabe-se que é dos pensamentos extremos que nasceram os regimes políticos igualmente extremos e malsucedidos; não esquecendo, porém, que é também de viragens radicais do paradigma mental que surgiram vertentes de pensamento intrinsecamente compassivas como o veganismo e movimentos sociais vigorosos que exigem ação climática. É, portanto, natural o cuidado que as pessoas têm, primeiro, na tomada de convicções fortes e, segundo, na sua externalização, pois estas podem materializar-se na forma de um gigante – bom ou mau, mas indubitavelmente poderoso.

Isto para mostrar que o reconhecimento da importância incontestável que o ativista tem numa sociedade permissiva não deve implicar a ostracização do pensador sentado no canto da sala e de músculos mais lassos do que os do ativista; ou do agente silencioso que passa mais tempo na ponderação interna das próprias convicções, não chegando nunca a promovê-las sobre os outros. A mudança vem sob diferentes formas.

Leave a Reply