A pobreza é multifacetada. Há a conceção de quem a vê e aquela de quem a sente. Escrevo este texto como mera observadora – ou talvez, testemunha – mas nunca a senti na pele nem no estômago nem na sola do pé. Nós, pessoas de classe média, possivelmente média-alta, (também auto-alcunhadas de “os privilegiados”) temos uma tendência inata para intitular os que vivem em menos abundância como desgraçados, coitados, infelizes, com menos oportunidade desde o primeiro dia.
Autoria: Marta Oliveira
Esta questão do conceito e quantificação de oportunidade gerou em mim uma certa inquietação. Será isto verdade, e teremos nós, tu e eu, informação válida para chegar a uma conclusão de tal brutalidade? Vamos voltar atrás, dissecar aquilo que jaz na fonte do desassossego. A verdadeira questão que se põe é se a desigualdade de oportunidades é efetivamente um conceito objetivo e determinado. Decidi que a maneira mais cristalina de procurar pela resposta seria através dos olhos mais fiéis e inocentes – no fundo, objetivos – da sociedade.
Esses são os olhos do R e do J, cujos nomes serão ocultados por razões de privacidade. R e J são dois meninos de 7 anos, cujas vidas se dividem por dois pólos do espetro. À primeira vista, seria imediato assumir que a idade é o único fio capaz de os unir, tão díspares são os seus enquadramentos na sociedade. Mas tal como é rápido o nosso julgamento sobre as oportunidades de vida de cada um, baseados meramente em estatística e observação informal, também o é esta ideia.
Aceitei então esta missão, com consciência da responsabilidade de tal encargo, de sentir o mundo (mesmo que só pela sua superfície) através destas duas crianças, com toda a ingenuidade que esta perspetiva acarreta. E numa tentativa mais justa, comprometi-me a ouvir o que tinham a dizer, ver pelos seus olhos, e refletir sobre este conceito do desequilíbrio de oportunidades.
– Conta-me como foi o teu dia hoje. És o primeiro a acordar? Quem é que te acorda de manhã?
R – Não, minha mãe é a primeira.
J – A mãe. A mãe vai-nos chamar, nós saímos logo ou não saímos, porque temos de ir para a escola. Mas às vezes levantamo-nos logo.
– És tu que escolhes a tua roupa?
R (com um riso envergonhado) – Não, minha mãe…
J – Não, é a roupa da escola.
– E depois?
R – Depois eu tomo o café da manhã.
J – Depois vou tomar o pequeno-almoço.
Conheci o R há uns meses, como parte de um programa de apoio escolar que é dado a crianças da Ludoteca da Galiza, no Bairro do Fim do Mundo em São João do Estoril. O R é brasileiro, está no 1º ano da escola primária, e é possivelmente a criança mais energética, e carismática em igual parte, que já conheci.
– O que é que costumas comer?
R – Às vezes eu como um pãozinho. É, mas hoje eu não comi. Mas bebi só um leite.
– Porquê, não tinhas fome?
R (num tom constrangido, quase envergonhado) – Porque não, porque não quero.
– Não te apeteceu?
(R abana a cabeça, sem me olhar nos olhos.)
– Mas depois comeste na escola certo?
(R acena levemente com a cabeça.)
O R veio para Portugal este ano, acompanhado da mãe, que “faz faxina”. Quando lhe perguntei uma data mais precisa, este respondeu “Um tiquinho atrás, foi um mês que eu estou na escola. Deixa ver quando eu cheguei…Não me lembro”. Os irmãos e primos, em número e nome incerto, permanecem no Brasil.
O J frequenta o 2º ano de uma escola salesiana, a mesma a que eu própria pertenci há cinco anos, e é o membro mais novo de uma família de quatro, mãe, pai (“vendem casas, mas não sei como é que se chama a profissão”) e irmão. Os nossos caminhos cruzaram-se por meio de amizades comuns há relativamente pouco tempo, mas senti desde logo um certo conforto com o J para indagar na sua história, na sua perspetiva do mundo. Seguro de si mesmo mas humilde, afável e atencioso, contou-me que gosta de futebol, que joga com os amigos no recreio e até nos torneios contra outras turmas!
– O que é que costumas comer?
J – O que eu costumo mais comer é cereais, cereais com leite.
– E pões primeiro o leite, ou os cereais?
J – Primeiro os cereais, porque depois se nós pomos o leite depois os cereais ficam mesmo todos a flutuar.
Já o R opta pelo basquete. “Basquete eu gosto. Futebol às vezes eu gosto, estou treinando… Eu sei dar cueca também. Eu já vi um vídeo de fut e basquete, o senhorzinho enganou o cara e fingiu que jogou a bola para lá e ele pum foi na cesta.”
– Viste esse vídeo onde?
R – No Facebook. No telemóvel de minha mãe.
– E gostas de ver televisão?
R – Gosto. Tenho uma em casa. É uma porcaria velha.
– E o que é que gostas de ver lá, desenhos animados?
R – Gosto, às vezes passa Mickey.
Quando resolvi fazer as entrevistas ao R e ao J, tinha esta ideia tendenciosa e altamente preconcebida daquilo que seriam as suas respostas às minhas perguntas, e dos rumos que as conversas seguiriam. Quão elementar da minha parte pensar por momentos que seria de alguma maneira plausível pressagiar o pensamento de uma criança. Não só não existe qualquer traço de simplicidade no parecer de um moleque de 7 anos, como ousaria ainda dizer ser uma perspetiva mais intrincada do que a de qualquer adulto, abonado ou desprovido.
E apesar do antagonismo dos seus estilos de vida, em muitos aspetos, e respostas, as suas vivências e rotinas entrelaçam-se. Isto sem nunca esquecer que algumas diferenças são efetivamente gritantes, e são estas que nos prendem os pés bem firmes ao chão.
– Costumas receber prendas do Pai Natal?
R – Hmm prendas não.
– Como é que é o Natal em tua casa?
R – Não é nada, ninguém dá nada. A minha mãe não dá presentes, não faz nada, não faz nada, e nunca me dá.
– Mas qual foi a melhor prenda que já alguma vez recebeste, nos teus anos por exemplo?
R – Prenda, nada. Eu fiz o aniversário na escola. Tipo, fiz na escola, fiz um bolo, só que aí eu cheguei a casa. Só que aí eu chorei.
– Como é que é o Natal?
J – É giro. Do lado da mãe vamos primeiro a casa do avô, primeiro vamos lá, jantamos. E depois há a sala de jantar, depois há uma porta que tapa, e depois o Pai Natal vai lá pôr os presentes.
– A sério? E o Pai Natal é bonzinho, costumas receber muitas prendas?
J (entusiasmado) – Sim!
– Qual foi a melhor prenda que já recebeste?
J – Hmmm…Já recebi uma Nerf muito gira, e também um dos presentes que eu gostei muito foi a minha avó que deu-me, foi os óculos virtuais. E a minha mãe e o meu pai deram-me os dois uma viagem de 4 até Londres!
A Ludoteca da Galiza e a equipa empenhada por trás desta organização mobiliza todos os recursos possíveis para que estas crianças tenham comida no estômago, sapatos nos pés e uma base de educação que os ajude a voar um pouco mais alto do que aquilo que planeiam para a sua vida. Fazê-las perceber que a conceção de oportunidade é concebível e alcançável para todos, incluindo eles próprios, caso reúnam boa-vontade, motivação e persistência suficiente para derrubar a barreira que lhes foi imposta à nascença.
– O que é que queres ser quando fores grande?
R – Hmmm polícia!
J – Futebolista, e também construtor.
– Porquê?
R – Porque sim, porque a polícia pode matar ladrãos, se eles fugir claro. Dá tiro no pneu do carro de fuga.
– Construtor como o das obras?
J – Não, gosto de desenhar no computador.
– Então gostas da parte de fazer o plano da casa?
J – Sim.
– E ao mesmo tempo ser futebolista.
J – Sim, mas não vai dar para fazer os dois.
– Nunca se sabe! Tens algum jogador preferido?
J – Tenho dois, o Ronaldo e um do Sporting que é o Bruno Fernandes.
– E o que achas de te tornares o presidente, gostavas?
R – Sim. Fazia tudo!
J – Prefiro ser futebolista porque quando és presidente de Portugal estás muito ocupado, não podes descansar.
– Qual é a coisa mais fixe de ser o presidente de Portugal?
R – Que aí eu ia mandar em tudo.
– Mas olha, quando és presidente não sei se podes fazer tudo o que queres. Se calhar podes, eu não sei. E sabes quem é o presidente de Portugal?
R – Quem?
– Sabes o nome do senhor que é o presidente de Portugal?
R – Hmmm não, mas ele já foi na minha escola. Eu acho que já foi na minha escola. Ah não, não era, não foi não. Era o presidente da câmara.
– Mas se fosses, qual é que achas que ia ser a parte mais fixe?
J – Mandar, e também que as pessoas gostem de mim.
– E sabes quem é o presidente?
J – Sei, Marcelo Rebelo de Sousa.
Com o desenrolar das conversas, apercebi-me que o R e o J encontram-se agora no último troço da ponte que une os seus rumos. Os seus discursos emaranham-se um no outro, e a congeneridade presente nesta amálgama de ideias apela à sua pureza de espírito. Dentro em breve, a divergência de caminhos tornar-se-á quase irrevogável, mediada pelos clássicos paradigmas da sociedade e pela crescente autoconsciência das circunstâncias envolventes.
É aqui que se dá a génese da objetividade, a pré-conceção do compasso a que o mundo gira, aquilo que deve ser porque sempre o foi, e assim será também para estes dois meninos. Pelos seus olhos, as vivências tão distintas de cada qual são vistas como apenas isso e nada mais, a partir do qual nada se pode ou deve inferir. Devemos admirar essa transparência, em vez de a sentenciar, e dar o contributo possível para que as suas aspirações sejam sempre altas e nunca condicionadas pelos realistas que por aí andam.
No limite, trata-se de uma ausência de recursos, mas nunca de capacidade – e de uma maneira ou de outra, é algo domável. Com um empurrãozinho daqueles que acreditam que o destino não se encontra totalmente predestinado, é possível tapar esta brecha, ou pelo menos estreitá-la.