Monologue à deux

Autoria: João Carranca (LEEC)

Breves frases sem sentido deslizam sorrateiramente pelas conversas que não temos.  Expressões absurdas, criadas a partir de outras expressões que talvez nunca tenham tido significado. Numa cidade vaga e familiar, num café que não existe, um homem e uma mulher de beleza irrealista conversam:

– Quando era criança, ambicionava ser a Rainha num baralho de cartas velho que tínhamos em casa… Pensei durante muito tempo que era uma vocação verdadeiramente heráldica…. Mas claro, quando se é criança existe uma certa tendência para elevadas aspirações morais. É de facto só mais tarde, quando todas as nossas aspirações são imorais, que pensamos nas implicações das nossas ingenuidades passadas.

– Nunca prestei muita atenção a crianças, mas sempre acreditei num certo sentido artístico inato que possuem… Sabes, não consigo deixar de tentar alcançar um significado maior naquilo que dizes… Perdoas-me?

– Não inteiramente… Nunca devemos tentar invadir os pensamentos e sentimentos que outros fingem pensar e sentir. São sempre demasiado pessoais, o que, claro, é totalmente impossível nestas circunstâncias….Dói-me verdadeiramente partilhar todas estas confidências contigo, pois apesar de totalmente falsas, de uma certa forma constituem parte da minha alma hipotética… As nossas maiores tragédias acontecem na ideia que temos de nós próprios, sabes?

– É tão verdade o que disseste…Mas porquê dizê-lo? Magoaste-me, sabes…Porquê remover esta conversa da sua constante irrealidade?

– Sim, tens razão… É a minha vez de pedir desculpa… Vamos mudar de assunto… Ultimamente é sempre tarde demais para tudo! Que chatice…

– Não peças desculpa…esquece esta conversa… todas as boas conversas são apenas e só monólogos a dois… As conversas mais deliciosas, mais íntimas e, sobretudo, mais moralmente construtivas são aquelas que os romancistas escrevem.

– Já alguma vez leste um livro de gramática?

– De que língua?

– Qualquer uma, desde que não exista…

– Não, nunca… não gosto de saber a maneira correta de dizer as coisas… A única coisa que aprecio em livros de gramática são as exceções.

– Concordo… Sempre odiei verbos… São eles que dão significado às frases… Sabes, tenho um amigo que enlouqueceu (sempre que tenho uma conversa mais longa do que o normal, um amigo meu enlouquece) que decidiu dedicar a sua vida a destruir a língua escrita.

– (Porque é que enlouqueceu?) 

– Ainda não sei….Estava a tentar encontrar significado em frases sem palavras ou letras… A importância do problema levou-o à loucura… um dia pegou num revólver…

– Oh, não… Tudo menos isso… Um homem desses nunca se mataria… Conheces mal esses teus amigos que nunca tiveste… um dia inventei uma mulher… a minha melhor amiga, mas nunca a cheguei a ver. Até que um dia esqueci-a.

– É uma pena, sabes … os melhores amigos são aqueles que nunca existiram… Davam-se bem?

– Creio que sim… ainda não descobri… Apetece-me voltar aos meus sonhos… esta conversa consome-me…

– Talvez precises apenas de mais convicção…

As duas criaturas à mesa do café certamente nunca tiveram esta conversa, enquanto bebiam chá, mas estavam tão impecavelmente vestidas que parece uma pena que nunca a tenham tido. Quando inevitavelmente seguiram os seus caminhos e cada um se casou – pois eram demasiado semelhantes para casar um com o outro – se por algum desconhecido motivo lessem este curto diálogo, reconheceriam certamente todas as palavras que nunca disseram. Reconheceriam certamente não só a sua verdadeira essência como tudo aquilo que nunca quiseram ser e não sabiam que eram.

Se alguma vez lerem este diálogo, deixem-nas acreditar que foi isto que disseram, numa cidade vaga e familiar, num café que não existe.

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