Autoria: Ângela Rodrigues (LEFT), João Dinis Álvares (MEFT)
Recentemente, o proprietário do Alojamento Local no antigo parque de ciência e tecnologia, Taguspark, começou a espumar da boca numa audiência em tribunal, onde foi acusado de não ceder o terreno para a construção de uma casa de alterne, que a mui nobre e sempre leal Câmara Municipal pretende criar, numa tentativa de combater os problemas de saúde mental dos encarcerados do Instituto Superior Prisional, que não aguentam o cacarejar dos milhares de galinhas que habitam o subterrâneo do Instituto nem os barulhos intestinais provocados pelas intoxicações alimentares regulares.
Devido à polémica que tem tomado a atenção dos canais noticiosos do país, fui na semana passada visitar a Torre do Tombo, na minha canoa automática, para investigar o passado do Taguspark. A meio caminho, passei pelo Instituto Superior Prisional (ISP) que, feito Ararate bíblico, só faltava ter uma arca gigante no sítio do que era o antigo Edifício Central do Instituto Superior Técnico, de acordo com uma referência encontrada num jornal académico da altura, o Diferencial, já há muito perdido e esquecido. Ouviam-se gritos do motim que se formava todas as semanas, devido às más condições da prisão, e dos donos dos múltiplos restaurantes panorâmicos da torre a norte do Edifício Central, que insultavam tudo e todos, pedindo que os prisioneiros se calassem, “Já não se pode comer marisco em paz nesta zona da cidade! Calem-se lá, parecem crianças”, gritava o dono do restaurante do 4º piso pelo megafone.
Ainda abismada com a completa cacofonia que é o Instituto Superior Prisional, continuei caminho para a Torre do Tombo, mais curiosa com a relação entre o Taguspark e o ISP. Nos tempos que correm, deslocar-nos em Lisboa é uma tarefa complicada, com greves constantes da SP (Submarinos de Portugal), cujo diretor é o tetraneto de um político de apelido Portas, já perdido na história; dizem que nem sempre foi assim, mas a subida das águas devida às alterações climáticas, aliadas a um projeto falhado de drenagem da cidade cujo falhanço foi provocado pelo enferrujamento de uma tuneladora com água benta, tornaram a Torre um local quase inacessível. Entrei meio a medo, sem saber que à minha espera se encontravam os guardiões da Torre, quais oráculos, “Estávamos à sua espera, sabemos que tem perguntas sobre o Taguspark”.
Estenderam-me cada um um copo, “Abençoada sejas pela história deste país”, disseram em uníssono: no primeiro copo, vinho do Porto, e, no outro, vinho da Madeira, bebi ambos, a garganta queimou-se e as portas abriram-se. Lá dentro, um sem fim de cérebros nas prateleiras de madeira e metal a serem cuidados por robôs em forma de livros; cheguei ao robô rececionista, explicando-lhe o motivo da minha vinda. Enquanto esperava pela permissão, num grande ecrã faiscavam alertas: a Alameda D. Afonso Henriques, no topo da qual se encontra o ISP, estava a ser invadida por um exército de macacos que retornava ao seu poiso, cada legião na sua fragata, bandeiras com caveiras a preto e branco espalhadas. “Sabia que esses macacos levaram ao final do que havia antes do ISP? Deixo-lhe aqui a referência. Está aqui o cérebro que requisitou, é de um jornalista da altura; só tem de pôr estes dispositivos nos ouvidos e há de conseguir falar com ele.”
Não sei o que esperava quando coloquei os dispositivos nos ouvidos, mas nada me tinha preparado para ser mentalmente transportada para um corredor com dez portas. De todos os arquivos a que a minha profissão já me levou, este é sem dúvida o mais sofisticado; não tem nada a ver com aqueles comprimidos que induzem um sono, no qual a informação que desejamos obter nos é revelada. Não temos grande oportunidade de fazer perguntas, é quase como se estivéssemos a ouvir música. Deveria chamar alguém? Grito não sei muito bem para quem, “Olhe, desculpe, quero saber mais sobre os terrenos do Taguspark e o ISP,
estou no cérebro certo?”. A falta de resposta levou-me a achar que se tinham enganado no cérebro e que se tratava de um monge cartuxo e não de um jornalista, quando reparo que, em cada porta, estão agora inscrições. Na terceira porta à minha esquerda leio, “Memórias: Alameda e Taguspark, nos anos 2023 a 2050”. Achei estranho uma inscrição tão grande e completa quando comparada com as das outras portas, que diziam apenas Lavagens de Dinheiros do Governo ou Memórias da minha querida família, porém confiei que aquela porta suspeita iria resolver os meu problemas. Abri-a e ouvi no fundo da minha consciência a voz de um dos oráculos, “Há duas coisas das quais nunca se pode esquecer: o sentido é dado pela regra da mão direita e após a jogada de uma carta +2 é possível jogar uma +4”.
Abri a porta e senti que o peso do meu corpo desaparecia, o ar sugou-me, quase rebentando as costuras da roupa, e fui levada Lisboa fora, o brilho das ondas, o Castelo de S. Jorge lá em cima do monte, o abandonado Amoreiras Shopping a olhar a cidade como se fosse um cadáver semi-vivo, uma cidade que era mais um arquipélago, até chegar, sabe-se lá como, ao ISP. A voz, que presumi ser do jornalista, começou a contar algo, mas o que disse perdeu-se, e à minha frente Lisboa ia mudando, via à minha frente o tempo a voltar para trás, será que foi mesmo vinho do Porto que me deram?, via a árvore gigantesca onde o exército de macacos se reunia anualmente a ficar cada vez mais pequena, os macacos a tornarem-se bebés e outros que saíam das suas covas debaixo da água a voltarem à vida, um império de vida a tornar-se numa torre cúbica, envidraçada, imponente, mas morta, silenciosa. Do outro lado, uma torre igual saía do chão, os vários restaurantes panorâmicos a serem desconstruídos, os camiões de marisco a voltarem para as docas, os empregados que gritavam a engolirem o ar de volta, o sol e a lua a virem de oeste para este. Sentia-me a perder o equilíbrio de tão súbitas mudanças. Levantei a mão direita, rodei-a, e a mudança do tempo abrandou. Não estava habituada.
Ouvia agora com mais clareza a voz do jornalista, que me explicava o que se passava à medida que estas mudanças ocorriam. Ao mesmo tempo, surgiam a esvoaçar uns papéis, primeiro relatórios dos Serviços de Reabilitação Estudantil, depois edições do jornal académico Diferencial. “Experiência Aumenta Exponencialmente as capacidades Mentais dos Macacos, IST vai fechar. Não há data de reabertura”. Numa tentativa de ir para além da voz, vou passando os olhos pelos títulos e estico a mão para agarrar uma edição, “Instituto Superior Técnico celebra protocolo com o Jardim Zoológico de Lisboa, doando parte da Torre Sul à ala dos macacos”?, leio ainda, “Presidente afirma: “Se podemos ter galinhas no Central, macacos na Torre Sul não me parecem mal””. Mais habituada às mudanças temporais, rodo a mão direita numa tentativa de abrandar ainda mais o tempo, apercebo-me que consigo movimentar-me neste espaço e desloco-me para a torre dos macacos. Aquilo que me deram não pode ter sido vinho do Porto, é tudo demasiado real. “Longa vida à tecnologia, abençoada seja a Inteligência Artificial”, digo para mim mesma. À entrada, vejo um ecrã com a data, 25 julho de 2037, dia Mundial da Prevenção do Afogamento. Parece-me adequado, ainda bem que tenho galochas, penso, enquanto olho para a água que tenho pelos joelhos; levo a mão ao bolso e retiro o Diferencial que apanhei anteriormente, o protocolo foi assinado há quatro anos. À minha frente, aparece o que presumo que seja um professor, com uma bata branca e um macaco ao colo, “Precisa de alguma coisa?”, pergunta-me enquanto faz festinhas ao pequeno símio. Como se tivesse perdido a capacidade de falar perante esta situação, olho muito fixamente para ele até sentir que o ambiente se tornou desconfortável, “Quem é um bom macaquinho, quem é? Que criatura tão fofa e inteligente que tu és, não é?”, ouço-o a falar com o macaco. Sentindo uma pontada de vergonha alheia, começo a retroceder a marcha sorrateiramente para a porta, em busca de respostas noutros edifícios.
A cabeça pesa-me, a visão fica turva, tenho de me sentar algures, mantendo sempre a mão direita parada para que o tempo não ande. Ao longe, enquanto os olhos se fecham, ouço guinchos, cacarejos, gritos e correria.
Onde é que vim parar?