A História do Instituto Superior Prisional: GALP e o Ativismo (4/5)

Fonte: Restos de Coleção, Instituto Superior Técnico (editado)

Autoria: Ângela Rodrigues (LEFT), João Dinis Álvares (MEFT)

Uma voz grita “Bem-vindos ao Salão Nobre”. Sinto alguém a abanar-me, abro lentamente os olhos, “Não te preocupes, isto costuma acontecer aos principiantes, da primeira vez que estão diante Dela. Espera até conheceres os outros”, diz-me o Senhor Borboleta. Olho em volta, os vultos estão, cada um, agarrados ao seu crânio, sangue escorre-lhes pelas faces, à cabeceira da mesa, a Líder Laranja ordena aos estudantes que façam mais convites, despejando um rol de nomes que, segundo ela, tinham de estar presentes no Repasto dos Primitivos.

Colocaram também um crânio à minha frente, cheio de sangue, e fiquei parada, nunca tinha bebido sangue, “Não te preocupes, se não quiseres beber, isto é um espaço seguro”, disse o Sr. Borboleta e apontou para dois vultos à nossa esquerda, “Aqueles ali estão a beber Coca-cola, eles não conseguem digerir muito bem sangue de porco.” Experimentei um pouco, mas não consegui distinguir sabor nenhum, não sei se só não tinha a aptidão para tal ou se era de estar em memórias corrompidas do jornalista.

Ao fundo do salão, alguém começou a arrastar uma cortina negra, pesada, densa, o vulto quase a perder as forças, mas ninguém se levantou para o ajudar, estavam todos demasiado focados no vermelho que lhes descia pelas gargantas; lentamente, por trás da cortina, foram aparecendo vários corpos pendurados por cordas ao teto, nus, com os pescoços torcidos pela pressão do próprio peso, uns ainda meio vivos, outros já esbranquiçados, por dentro já deviam estar a apodrecer. Mal o cenário foi todo revelado, a deusa com o colar de quatro letras apareceu, com uma aura brilhante por trás como se dos céus tivesse caído, de braços levantados para os corpos, cada um com um letra no tronco pintada. Quando o último corpo finalmente rodou para a frente, a palavra completou-se. Dizia “ATIVISTAS”.

Não sei bem o que pensar perante o que os meus olhos veem, sinto um misto de choque e curiosidade, talvez a voz do jornalista tivesse razão quando me aconselhou a não entrar aqui. Os vultos começam a sair pela mesma porta por onde entrámos, “Vem comigo, ainda tenho trabalho a fazer”, diz-me o Sr. Borboleta. Avançamos em direção aos corpos, que o Sr. Borboleta faz descer com uma corda, “Não os podemos deixar aqui, os corpos não podem ficar estragados”; empilhamos os corpos em dois carrinhos de mão, sigo o experiente Sr. Borboleta até chegarmos ao que suponho que sejam os frigoríficos da cantina, com uma naturalidade que me espantou, ajudo-o a guardar os corpos. Caminhamos até um pavilhão com uma placa “Piscina”, “Agora vamos encontrar-nos com os outros na Cerimónia de Purificação. Não te preocupes, se tiveres alguma dúvida, fala comigo”, explica o Sr. Borboleta, enquanto entramos num espaço escuro; os vultos estão à volta de uma piscina vazia e, no primeiro andar, a GALP encontra-se junto de uma pilha de cadáveres e do que me parece ser um conjunto de piras. Que tipo de cerimónia será esta?

Repara no que estão a fazer por trás dela, diz-me o Sr. Borboleta, apontando para os corpos que estavam a ser arrastados para dentro das piras, São só corpos?, pergunto-lhe, Sim, ela nunca queimaria animais, o nome dela impede-lhe, Mas porquê?, GALP significa Gratidão aos Animais, Lamento pelos Porcos, daí ser o único sangue que bebemos. Enquanto ouvia isto, líquido era despejado por cima dos toros de madeiras, O que é aquilo?, continuei, curiosa, Não sabemos bem, mas pensamos que à noite ela liga um dos seus braços a um balde e deixa escorrer para lá o que sai. Um fogo intenso aclarou toda a piscina por momentos, como se um relâmpago acabasse de cair. Das piras, por baixo, saíam canos de metal que iam deixando cair as cinzas pela piscina e, lá em baixo, de braços abertos os vultos riam-se, uns choravam de alegria, outros abraçavam-se já com a cara meia suja pela cinza que se misturava com o suor, uns davam saltos, outros tinham a língua de fora à espera que lhes saísse a sorte grande com o floco cinzento.

“Daqui não conseguimos apreciar o festival cinzento, vamos descer”, propõe o Sr. Borboleta; os vultos continuavam a apreciar a chuva de cinzas que enchia a piscina, alguns deitavam-se e rebolavam, ficando com uma tonalidade cinzenta, outros começavam a alisar a cama de cinzas que se tinha formado. Vindo da zona das piras, ouço um rumorejar que se tornava numa música espiritual; os estudantes, que durante a Cerimónia de Purificação estiveram ausentes, distribuem dois ancinhos a cada participante, um grande e outro, pouco maior que uma mão, O que vai acontecer?, pergunto ao sr. Borboleta, A GALP vai iniciar o Ritual de Conexão com o Chi interior, E para que servem estes ancinhos?, Para desenhar na cinza: para os desenhos maiores, usamos o ancinho grande, para os pormenores, o pequeno. Mas se estiveres cansada e só quiseres fazer desenhos pequenos, podes sentar-te no chão e desenhar com o ancinho menor, ninguém te vai julgar, eu não deixo. 

Inspirem e expirem lentamente, ecoa a voz da GALP, Soltem os vossos pensamentos e deixem-se levar pela energia presente nesta sala, a energia das cinzas, que nos conecta à forma mais básica do nosso ser, sintam apenas e deixem-se levar. Inspirar, expirar, inspirar, expirar… Observo em volta, a maioria dos vultos tem uma expressão de tranquilidade no rosto e os padrões por eles registados são extensões da espiritualidade interior, O que acontece com os desenhos que fazemos?, São apagados, os estudantes recolhem as cinzas para espalhá-las nas mesas dos anfiteatros do Pavilhão Central, como aquele onde decorrem os momentos musicais mais intensos, para melhorar a fraca aderência das mesas provocada pelos problemas de humidade, explica o Sr. Borboleta, Somos nós que aguentamos o bom estado das salas. Movemo-nos no escuro para que a luz brilhe sobre os alunos”.

Sentámo-nos a ver o ritual. Ao fundo, um gongo ia ressoando pelo edifício, marcando o ritmo a que os vultos se deviam mexer, lá em cima continuavam a queimar as piras ainda, mas a GALP desaparecera, “Para onde é que ela foi?”, Deve estar a preparar-se para o que vem a seguir, é o final do círculo, o momento mais importante. Entretanto, um coro levantou-se, vestidos com o traje académico, cantando o Requiem de Verdi: de repente, tudo ficou escuro, velas fraquejantes iluminaram o piso térreo, o mesmo onde os vultos terminavam os seus desenhos, os seus demónios interiores já expelidos, a reconexão com a corrente do subsolo restabelecida. Os que estavam sentados, levantaram-se, os que estavam de pé, moveram-se, como que orientados por algo superior e um exército ordenado formou-se na piscina vazia, coberta de cinzas de mortos que a história jamais lembrará. O Sr. Borboleta levantou-se para se colocar junto a uma alavanca, virou-se para trás para ver as fileiras que, calmas, ouviam o chamamento do Requiem e hesitou, o momento ainda não chegara. Olhou para mim, confiante.

Lá em cima, o coro terminava. 

A alavanca desceu e um portal abriu-se. O que é que se avizinha?

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