As minhas meias da sorte

Autoria: Francisco Raposo (MEFT)

O primeiro interveniente nesta história é o exame de álgebra linear para o qual fui inadvertidamente empurrado, no primeiro semestre depois de ter entrado na faculdade. Para ser franco, contava passar o Natal a enfardar Ferrero Rocher e não valores próprios, embora a ingestão de uma quantidade exagerada de Mon Cherries tenha ajudado no processo de luto. No dia do exame, saí de casa com antecedência suficiente para não chegar atrasado, mas não tão exagerada que fosse preciso passar mais tempo do que o necessário no Inferno, também chamado Técnico.

Eis que, no caminho para a faculdade, surge o segundo interveniente desta história, um homem que me interpela, colocando-se à minha frente: “Dá-me o telemóvel e a carteira.”. Meio atrapalhado com a urgência do tal homem, e porque as boas maneiras são fundamentais, disse: “Hum… Bom dia.”. Na minha opinião, e podem dizer se concordam, a resposta dele foi, no mínimo, rude – ele puxou de uma navalha e repetiu: “Telemóvel e carteira”. Ora, além de não ser o maior fã de discutir com pessoas rudes, julguei que a navalha, em virtude da sua capacidade de causar danos letais, era um argumento convincente o suficiente para ter de acudir ao pedido do ladrão. Dei-lhe o meu telemóvel e tirei do bolso a minha carteira. Ainda tentei apelar ao seu lado mais sensível, pedindo apenas para manter o meu cartão de cidadão e o cartão do Metro, ao que ele acedeu, tão generoso da sua parte. Com isso, ele seguiu o seu caminho, e eu segui o meu, subtraído de um telemóvel e de uma carteira. Ainda assim, apanhei a linha amarela do metro, até à estação de Saldanha, e continuei a caminhada em direção à faculdade.

“Francisco, porque não foste logo à polícia?”, perguntam-me vocês, tão atentos à história. A esta questão, respondo com outra, tantas vezes repetida por estes campi fora: “Podem guardar as perguntas para o final?”.

Mas continuemos. A meio do percurso entre a estação e o Técnico, entra o último, mas não menos importante, interveniente, que me interrompe a passada, e diz: “Bom dia, dá-me o teu telemóvel e dinheiro.”. Apenas com isso causou uma impressão melhor que o outro, só por ter dito “Bom dia”, há que pelo menos louvá-lo pela boa educação. Não obstante estas considerações positivas, já devem ter os leitores reparado nos dois problemas óbvios. O primeiro é que já tinha sofrido um assalto minutos antes, e perdido os bens necessários para me safar deste. O segundo, de que me apercebi rapidamente, é que é bastante complicado convencer um ladrão de que não era ele quem me estava a tirar a virgindade diária de gatunice, se tal coisa existe. Tentei explicar: “Ouça, não vai acreditar, mas ainda hoje, há poucos minutos, fui assaltado por outra pessoa, e levaram-me o telemóvel e a carteira, de tal modo que não tenho nada para dar.”. A reação dele foi um bocado brusca, mas admito que já deveria estar à espera – ele puxou de um canivete suiço. Novamente, isto representa mais um ponto positivo a seu favor em relação ao outro, pois tratava-se de um ladrão com um sentido prático. Num momento, consegue estripar uma vítima, no outro, cortar as unhas com aquela mini-tesourinha. Desta vez, não tive alternativa senão repetir: “Eu não estou a brincar, aconteceu mesmo, podes ver os meus bolsos… sei lá, fala com o sindicato”. Ele pareceu acreditar em mim, porque respondeu: “A sério?, parece que tive azar”, com uma expressão tão desmoralizada que não tive alternativa senão sentir alguma pena por ele. Mais desagradável  que arriscar ir para a cadeia por roubar dinheiro é arriscar ir para a cadeia com o bolso vazio e uma pancadinha nas costas. Perguntei-lhe então, “Posso ir?, tenho um exame.”. No início, aceitou, e comecei a andar. Todavia, mal lhe virei as costas, ouvi a sua voz: “Olha, os teus sapatos são muito giros.”. Com a esperança ingénua de que não acontecesse aquilo que todos devem estar à espera que aconteça, retorqui, “Obrigado, posso-te dizer onde os comprei.”, ao que ele respondeu: “Não, não! Esses sapatos são muito giros.”.

Cinco minutos depois, estava a entrar na sala de exame, com os pés descalços, salvo umas meias vermelhas, ambas rotas no dedo mindinho. O professor mirou-me com um olhar desconcertante, mas tranquilizei-o: “Não se preocupe, professor, são as minhas meias da sorte”.

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