Epílogo

Autoria: António Luciano

“Aquilo é ainda a cidade de Ersília, e eles não são nada.”
Italo Calvino, Cidades Invisíveis.

ξ

O crime foi aqui – na minha cidade,
Nestas ruas que são carne e sangue dela.

Em vão tentaram encurtar-nos as frases longas,
Aquelas sofrivelmente longas,
Com as quais nos olhamos continuamente, 
Sem nos amarmos, 

E que a gosto, vêm dissimuladas,
A passo furtivo, animal, louco, 
Um golpe de vertigem desmedida,
Que se estraçalha a correr o fôlego a soco,
Com ímpeto brutal e homicida

Somente pela pirraça de poderem existir 
Ser apoquentação por coisa nenhuma,
Ser obstinação e pouco mais que isso
Do que o ruído das coisas ao cair.

E sentir nos lábios a loucura plena,
Diferencial e distinta,
Dessas frases que fazem valer a pena,
As que sangram tinta.

O crime foi aqui – na minha cidade,
Nestas ruas que são carne e sangue dela.

Em vão tentaram encobrir os gestos,
Os meus – e os dos outros,
Enterrá-los em dogmas, em sistemas, em convenções,
No recriminar das boas maneiras, 
Nas referências de virtude, nos arquétipos perfeitos e desejados, nas fixações,
Nas formas canónicas à medida do travo das novas interpretações.

E que não notássemos nas veias abertas 
das incoerências, dos sinais, das contradições, do desdém,
Que não sentíssemos a gangrena e o cheiro moribundo, 
Do quase e do aquém.
Que não percebêssemos a blasfémia,
Do quanto pecava por escasso.
E nos afogássemos na providência das suas leis, 
A não fazer mais do que tentar respirar na contrição.

Vieram frases longas,
Sofrivelmente longas
Em cânticos à porta dos quartéis,
E os gestos fizeram flores passear de mão em mão.

As ruas encheram,

Os cinemas começaram a circular as cenas cortadas
De todos os beijos que ficaram por dar,
Os ardinas distribuiram jornais e boletins em rajadas,
Com a notícia que veio para ficar.

As ruas encheram,

Em vão tentaram,

E dispararam,

E dispararam,

E dispararam,

O crime foi aqui – na minha cidade,
Nestas ruas que são carne e sangue dela.
Mataram-nos o carteiro
Mas não nos levaram as frases longas.

Não queria que o meu último poema aqui não fosse isso mesmo: um último poema. Por inspiração direta e consciente disso ( ao mesmo tempo, um aproveitamento para avançar com um aparte e agregar umas recomendações culturais, uma rubrica clandestina); ficam “El ruido de las cosas al caer” de Juan Gabriel Vásquez, “Elegia a Ramón Sijé” de Miguel Hernández, “El Crimen fue en Granada” de Antonio Machado, “Ode ao Destino” de Jorge de Sena e “As Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, “Cinema Paradiso” de Giuseppe Tornatore,  “O Carteiro de Pablo Neruda” de Michael Radford que com mais algumas outras coisas com nome e sem nome, dão forma a este poema.

Leave a Reply