Revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior: Uma história de inércia, atropelos, passos atrás e falhanços políticos

Ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, numa conferência de imprensa do Conselho de Ministros, Lisboa, 6 fevereiro 2025 (foto: Diana Quintela).

Autoria: João Carranca (MEIC-A)

O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) foi aprovado em 2007 e previa uma revisão logo em 2012, que nunca aconteceu. Caminhamos para o vigésimo aniversário do diploma ainda sem revisão, num processo que leva anos e está repleto de hesitações, passos atrás e falta de vontade política.

O atual governo, agora em gestão e com o parlamento dissolvido, apresentou publicamente, em dezembro de 2024, uma “proto-proposta” de revisão do RJIES que circulou pelo Ensino Superior, e que, após algumas alterações, foi aprovada em Conselho de Ministros. A interrupção colocou este processo, há muito adiado, novamente em ponto incerto.

Antecedentes

O RJIES, proposto em 2007, quando Mariano Gago era Ministro do Ensino Superior e Ciência no primeiro governo de José Sócrates, veio como resposta a um sentimento partilhado por muitos dirigentes nas várias Instituições de Ensino Superior (IES) de que o enquadramento legal em vigor e o seu sistema subjacente se tinha esgotado. O Ensino Superior estava, até 2007, retratado num conjunto fragmentado de diplomas, escritos e aprovados ao longo dos anos sem uma estrutura agregadora. 

A organização das IES era completamente diferente da atual. Não havia um Conselho de Gestão ou um Conselho Geral. As tomadas de decisão fundamentais nas universidades, como a aprovação de orçamentos e relatórios de contas ou a eleição do reitor, por exemplo, aconteciam no Senado, órgão que tinha paridade entre estudantes e docentes e não era, ao contrário dos atuais Senados, apenas consultivo. Nas escolas, existia uma figura equivalente (no IST, por exemplo) denominada Assembleia de Representantes. Existia ainda um Conselho Diretivo, mais restrito, eleito por essa assembleia, um Conselho Científico, constituído por todos os doutorados da escola e um Conselho Pedagógico. O Conselho Científico acabava por concentrar muito do poder efetivo de decisão, já que a maioria dos assuntos passavam por lá primeiro. O Presidente de uma dada escola podia também, por lei, assumir a presidência de vários órgãos da instituição, algo que hoje é impossível. Diamantino Durão, presidente do IST nas décadas de 80 e 90, chegou a ser, simultaneamente, presidente do Conselho Pedagógico e do Conselho Científico. Conjugado com o facto de ser Presidente da Escola, os estatutos do IST atribuíam-lhe, assim, 3 votos na Assembleia de Representantes, um por cada cargo.

Tratava-se de um regime confuso, opaco e com muitas vulnerabilidades. O elevado número de participantes nos diversos órgãos, alguns deles com competências quase sobrepostas, diminuía significativamente a eficiência das IES. Era, por esta razão, claro para quase todos, que havia a necessidade de modernizar e fazer alterações profundas.

Relatório da OCDE, diploma final e estagnação: 2005-2022

Em junho de 2005, Mariano Gago pediu à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) para analisar o sistema de Ensino Superior português, que produziu um relatório abrangente lançado em 2007. O relatório criticou a diferença de autonomia entre politécnicos e universidades, a falta de representação de elementos externos nos órgãos de governo das IES – nomeadamente no Senado – assim como a liderança “fraca”, representada pela figura do reitor, motivada pelo método de eleição direta que existia à altura. O excesso de órgãos colegiais e a “micro-gestão” governamental das IES, resultando numa falta generalizada de autonomia, entre muitas outras características do sistema português, foi também alvo de críticas no presente relatório.

Faz sentido olhar com mais detalhe para a avaliação feita da posição do reitor. O relatório da OCDE considerou que a eleição direta enfraquece o reitor, por promover “o foco interno total” e por ser “um processo político”. Esse processo político, com as devidas implicações, como um programa eleitoral abrangente e “promessas eleitorais”, limitam, posteriormente, a liberdade de ação do reitor. Não desprezando a validade deste ponto de vista, esta argumentação apresenta falhas fundamentais no contexto português. O contexto internacional de onde a OCDE retira a sua idealização da figura do reitor ignora o peso inevitavelmente político que o cargo tem em muitas IES portuguesas. Sendo verdade que o reitor tem de ser um gestor competente, e essa componente não pode ser colocada em segundo plano, o cargo também tem e terá, a meu ver, sempre uma conotação política, especialmente nas instituições mais históricas. Acho francamente impossível alguma vez um reitor da Universidade de Lisboa, da Universidade de Coimbra ou da Universidade do Porto, conseguir ter uma ação apenas administrativa e de gestão, com todas as dinâmicas, movimentos, interesses, diversidade de escolas e questões políticas nacionais que afetam estas IES. Há decisões objetivamente com conotação política, como o ajuste dos valores da propina que, salvo congelamento por parte do governo, pertencem hoje às IES e podem ser, como já aconteceu no passado, votadas sob proposta do reitor.

O relatório também defendeu uma redução muito acentuada do tamanho de todos os órgãos de gestão, paralelamente com a quase eliminação dos estudantes desses mesmos órgãos. 

Se lermos com cuidado a nova arquitetura proposta neste documento, veremos que, o diploma do RJIES posteriormente apresentado por Mariano Gago e a sua equipa em 2007, não é apenas inspirado nas conclusões da OCDE, mas quase copiado integralmente delas. A proposta de um “organismo de governo” responsável pela nomeação e destituição do reitor, com a presença de docentes, estudantes, trabalhadores não-docentes e externos, com o “chair” ou presidente a ser preferencialmente um elemento deste último grupo, é uma descrição praticamente exata do que viria a ser o Conselho Geral. Até a proposta de limitar o órgão a 15 elementos foi claramente usada como ponto de partida, com o diploma final a prever um intervalo com mínimo de 15 e máximo de 35 participantes. A única originalidade do governo foi fugir à recomendação de que o reitor deveria ser “nomeado, e não eleito por este órgão de governo”, num processo de “competição pública através de processos normais de pesquisa e seleção”, de acordo com a lei portuguesa. O governo optou pela eleição direta, uma decisão que, na minha opinião, acabou por ir buscar o pior de dois mundos. Por um lado reduz massivamente a participação da comunidade na escolha; por outro lado, não retira a conotação política ao processo, mantendo o reitor como agente político, mas que simplesmente responde a um número menor de indivíduos. Criou-se um sistema que nem é carne nem peixe.

É também proposto um “Comité Executivo”, espelhando em absoluto o Conselho de Gestão atual, e lançada a ideia que se veio a transformar no polémico Regime Fundacional. A figura de Fundação Pública de Direito Privado, disponibilizada às IES por via do RJIES, permite a adesão ao regime de direito privado “nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal (…)”, com a flexibilidade e liberdade que esse regime prevê. O relatório descreve este sistema quase à letra: “Embora os detalhes dessa legislação sejam da responsabilidade do governo para determinar, esta deve, no mínimo, prever a eliminação de regulamentos que delimitem a autonomia declarada, que o corpo docente e não docente das Instituições de Ensino Superior seja definido como empregados da IES e deixe de ter estatuto de funcionário público, que os salários sejam da responsabilidade da IES, que a criação de cargos esteja sujeita a um processo interno que envolva o acordo formal do órgão de direção da IES, e que todas as nomeações para esses cargos (e promoções) sejam totalmente transparentes e sujeitas a um processo formal de divulgação e seleção que envolva um número significativo de elementos externos. As finanças das IES não seriam consideradas finanças do Estado. Tudo o acima mencionado, bem como outras liberdades, estariam dependentes de cada IES apresentar um orçamento equilibrado em cada ano.”

Um tema onde o governo não seguiu as recomendações foi na reestruturação do Senado, onde a OCDE propunha um órgão com poderes deliberativos para os “assuntos académicos”, e limitado a um máximo de 25 elementos. O RJIES tornou o Senado opcional, apenas disponível no ensino universitário, e tirou-lhe qualquer competência concreta, transformando-o num órgão puramente consultivo. As universidades que escolheram ter um senado, optaram por um modelo com centenas de membros, a maioria dos quais por inerência, e presidido pelo reitor. 

Sobre a redução muito acentuada da representação estudantil, João Cunha Serra, ex-presidente do IST e membro da recente Comissão Independente para a Revisão do RJIES, nomeada em 2023, afirma que, antes de 2007, eram os estudantes quem mais limitavam os trabalhos do Senado nas universidades: “Era muitíssimo difícil ter o Senado a funcionar por causa do quórum. E quem eram os principais responsáveis? Peço desculpa, mas tenho de dizer isto, eram os estudantes: não punham lá os pés. E o Mariano Gago, sendo do Técnico, conhecia bem esta realidade. Também Manuel Heitor, que na altura era Secretário de Estado, conhecia bem esta realidade e, portanto, quiseram acabar com ela.”

O diploma atualmente em vigor, após a discussão parlamentar e várias alterações, foi publicado em Diário da República dia 10 de setembro de 2007, com a expectativa, plasmada no artigo 185º, de uma re-avaliação daí a 5 anos. 

Durante o governo de Pedro Passos Coelho, com Nuno Crato a tutelar a pasta do Ensino Superior, a possibilidade de uma revisão foi várias vezes levantada. O ministro chegou a anunciar o fim do regime fundacional em 2012 e apresentou às IES uma proposta formal de revisão, que acabou por não avançar.

Na legislatura seguinte, Manuel Heitor sucedeu a Nuno Crato e não voltou a promover qualquer esforço no sentido de rever o RJIES por achar que não havia condições para levar a cabo o processo, uma decisão que teve o apoio do primeiro-ministro, António Costa. 

A Comissão Independente: 2022-2023

Chegamos então a 2022, altura em que o PS dispunha de uma maioria absoluta parlamentar pela primeira vez desde 2009, algo que motivou a ministra da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior, Elvira Fortunato, a finalmente aderir aos pedidos das IES e movimento associativo nacional, e iniciar o processo de re-avaliação do diploma, 16 anos depois da sua aprovação. Esse primeiro passo foi dado na forma da Comissão Independente para a avaliação da aplicação do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, constituída por um conjunto de personalidades de relevo e que apresentou o seu trabalho numa cerimónia pública em dezembro de 2023. Muitos esperavam desta comissão uma direção clara, ou pelo menos um conjunto de propostas concretas. Infelizmente, fomos agraciados com um extensíssimo manual de perguntas e respostas. 

O primeiro parágrafo do relatório indica logo qual será o tom do documento: “O presente relatório não exprime os pontos de vista da Comissão ou dos seus membros, mas sim um relato, tanto fiel quanto possível, da grande diversidade de opiniões, muitas vezes contraditórias, que resultaram da consulta pública efetuada. “

Não há qualquer análise crítica, tomada de posição ou sugestão concreta sobre qualquer das áreas fundamentais. Em vez disso, o leitor, legislador ou governante, tem acesso a cerca de 70 páginas de “a maioria acha que”, “alguns defendem que”, “outros não concordam totalmente” para cada uma das principais áreas temáticas do RJIES, seguidas de extensos anexos, como a reprodução integral de várias das respostas ao inquérito em cada tema. Não descurando o trabalho de criação do inquérito utilizado e análise das respostas, o título adequado para este documento é “Resultados do inquérito conduzido pela Comissão Independente para a avaliação do RJIES”. Era esperado pela maioria que este relatório final, escrito por um conjunto de personalidades que foram nomeadas precisamente pelo seu conhecimento alargado do Ensino Superior nacional, pudesse servir de guia ou ferramenta sólida de apoio aos legisladores e governantes que procedessem à revisão. Em vez disso, a decisão de não incluir qualquer análise aprofundada, opinião ou reflexão por parte dos membros da comissão, enfraquece o relatório final, a sua influência no debate público e nos agentes decisores, como veremos a seguir.

Proposta de revisão do governo: 2024

A queda da maioria absoluta socialista precipitou eleições que resultaram no primeiro governo do PSD desde o tempo de Nuno Crato. Fernando Alexandre, economista e professor na Universidade do Minho, foi chamado a liderar uma pasta que juntou a Educação, a Ciência e o Ensino Superior. A decisão de fundir estas várias áreas na mesma pasta foi muito criticada, com muitas acusações de que estava a ser criado um mega ministério. A sobrecarga de competências, no entanto, não impediu o novo ministro de propor um plano de ação para o Ensino Superior, a começar pela ambição de rever o RJIES o mais depressa possível. Em dezembro de 2024, após uma fase de auscultação, foi publicada uma proposta inicial, que depois de algumas alterações, mas sem nova fase de audiências, foi aprovada em Conselho de Ministros. 

Nesta proposta, o ministro responde a um conjunto de preocupações que ninguém tinha apresentado, ignora a maioria dos pontos chave que estão no centro da discussão há décadas e desresponsabiliza o Estado, nomeadamente em questões de financiamento.

Governação das IES 

A proposta inicial apresentada por Fernando Alexandre previa algumas melhorias, como o aumento da participação estudantil no Conselho Geral para pelo menos 25%, bem como a eleição direta do reitor. No entanto, essas melhorias vêm com um conjunto de erros difíceis de compreender.

Se é verdade que o ministro propõe o reforço dos estudantes no mais alto órgão deliberativo das IES, fá-lo à custa dos docentes e investigadores, em vez de reduzir o peso dos cooptados externos, como era vontade clara da maioria, um dos poucos temas em que o relatório da comissão independente havia sido relativamente esclarecedor. Para além disso, aparece uma nova cláusula que impede figuras de outras IES de serem cooptadas como externas, algo que em muito limita as escolhas de figuras com experiência de gestão no Ensino Superior. Esta decisão abriu, previsivelmente, caminho para uma reação de indignação por parte dos docentes e investigadores, indignação esta que se veio a manifestar num conjunto de pareceres com contrapostas. O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), por exemplo, considerou  “muito negativo que os corpos constituídos pelas pessoas que permanecem na instituição por muitos anos e que melhor conhecem o seu contexto, as suas limitações e as suas oportunidades de evolução fiquem em minoria neste órgão.“. Também previsivelmente, propõe o restabelecimento dessa maioria através da redução da participação estudantil, algo que foi acatado pelo ministro na proposta final que saiu do Conselho de Ministros. 

Em relação à eleição do reitor, Fernando Alexandre surpreendeu com uma proposta de eleição direta, com um peso de 25% para antigos estudantes, número igual ao peso dos atuais estudantes e marginalmente inferior aos 30% atribuídos aos docentes. Desconheço de onde terá tirado o ministro a ideia de evocar os antigos estudantes para este processo, tal como desconheço o que o terá motivado a propor uma tão elevada percentagem mas é uma proposta que coloca uma enormidade de problemas. Primeiro, como podemos definir e identificar antigos estudantes? Não é como se as bases de dados de alumni existentes fossem extremamente abrangentes ou sequer de igual nível entre as várias instituições. Segundo, torna-se obrigatório disponibilizar o voto online para este corpo eleitoral, com todas as questões que isso implica. Terceiro, realisticamente qual seria a participação deste conjunto de antigos alunos? Eu estaria disposto a apostar que, qualquer que seja o valor e qualquer que seja a variação entre IES, nunca irá justificar o peso de 25% proposto. A participação reduzida, por sua vez, permitiria a fácil instrumentalização do corpo eleitoral. Trata-se aqui de uma ideia que ninguém pediu e que não tem qualquer sentido. Não acho que a eleição direta seja necessariamente o caminho errado, mas os pesos dos diferentes grupos dentro da academia terá certamente de ser muito bem repensado.

Sistema Binário 

Nas décadas de 80 e 90, o ensino público politécnico foi fundamental no processo de universalização do acesso ao Ensino Superior, passando de menos de 10 mil alunos em 1980 para mais de 100 mil em 2001 [1]. Os politécnicos servem um propósito diferente das universidades, focado em áreas e cursos de natureza mais prática e com o objetivo singular de profissionalizar os seus estudantes. As universidades têm uma missão mais centrada na investigação científica e formação de académicos, disponibilizando cursos com bases teóricas muito mais fortes. Estas diferenças são a base do sistema binário, que, apesar de existir formalmente na lei desde 1973, é cada vez mais ambíguo. Vemos hoje processos de integração de escolas do subsistema politécnico em universidades, como está a acontecer neste momento com a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL) e a Universidade de Lisboa. Vimos também em 2023 a aprovação dos doutoramentos nos politécnicos. Existem planos, por exemplo, para a criação de um doutoramento em enfermagem na ESEL, opção que já está em fase de estudo há vários anos. Há claramente uma forte vontade por parte de uma porção considerável dos politécnicos, de se tornarem em universidades, ou pelo menos de se aproximarem o mais possível delas, isto por entenderem que quanto mais próximos forem das universidades, no limite integrando-se nelas, como foi o caso do ESEL, mais estudantes e financiamento conseguirão atrair. Não tenho a certeza de que, a longo prazo, esta noção seja verdadeira, mas mesmo que seja, a verdade é que nos encontramos numa rota de colisão entre os dois subsistemas. Face a esta evolução, seria obrigação da tutela redigir uma proposta de revisão do RJIES que contribuísse para a clarificação do sistema. Em vez disso fomos presenteados com um documento que só faz aumentar a confusão instalada. 

Em causa está a proposta de criação de Universidades Politécnicas, uma espécie de intermédio que não é nem uma coisa nem outra mas traz a muitas instituições a possibilidade de ter a palavra “universidade” no nome, algo aparentemente muito cobiçado. Este novo “sistema trinário” tem também critérios de acesso muito insuficientes, com apenas 3 ciclos de mestrado e um de doutoramento a serem necessários para poder passar  a ser uma Universidade Politécnica. Faz talvez sentido lembrar as palavras de José Mariano Gago, ex-professor do IST, “pai” do Ensino Superior português moderno e que tutelou a pasta durante mais de uma década [2]: 

“[…] Também as instituições e o seu quadro geral apenas se renovam com trabalho e luta. Consolidar Institutos Politécnicos superando com inteligência a sua origem de federações de escolas, mas não se burocratizando, antes libertando e apoiando as forças de cada unidade num conjunto com direção, é um desafio que estou certo vai ser vencido. Também a criação de verdadeiros consórcios de Institutos, articulando meios, construindo centros integrados de decisão, resolvendo a oferta formativa à escala de regiões, está na ordem do dia urge ser concretizado a curto prazo. O mesmo se dirá de consórcios entre Universidades, ou de instituições de investigação, mas não de agregados aberrantes de uma Universidade com um Politécnico, deixando desde já claro que nunca se poderão aceitar as tentativas repetidas de extinção, diluição ou abastardamento do Ensino Superior Politécnico. O interesse público impõe firmeza e a defesa de politécnicos fortes, mesmo contra a estranha sedução de alguma universidade à procura de rumo e de um hipotético lugar na liga dos que ainda julgam medir-se pelo volume mesmo que feito de coisas díspares e sacrificando o ensino politécnico. Temos mais alunos, de diversa origem e formações prévias, e os Politécnicos foram decisivos na dinamização da vontade de estudar ou de voltar a estudar que é uma das maiores esperanças atuais no desenvolvimento e no futuro da nação portuguesa […]”.

Financiamento, fusões e endogamia 

O crónico subfinanciamento do Ensino Superior é sempre um dos principais temas de discussão quando se avalia legislação. A proposta do governo não reforça o apoio às IES neste departamento, assumindo, em vez disso, um caminho de desresponsabilização. É o caso das bolsas de mérito, onde esta proposta tem a intenção de fazer as IES suportar na íntegra o encargo financeiro associado. Citando o CRUP: 

“Eliminar a responsabilidade do Estado da atribuição de bolsas de estudo de mérito a estudantes com aproveitamento escolar excecional é sinal de desinvestimento nos alunos, em contradição com o espírito que preside à elaboração desta proposta de alteração do RJIES e com outras políticas nacionais. Passar esta responsabilidade para as IES sem que exista um reforço financeiro pode significar que algumas instituições não tenham capacidade financeira para as atribuir.”

Propostas como a garantia de prestação de serviços de saúde mental no âmbito do bem estar dos alunos também não trazem garantias de financiamento por parte da tutela, deixando, novamente as IES numa posição desconfortável.

No que se refere a fusões, no ponto 2 do Artigo 37.º é referido que “os estabelecimentos de ensino superior privados podem ser objeto de transmissão, integração ou fusão em instituições de ensino superior públicas”. Novamente vemos a mistura sem critério de tipologias próprias de Ensino Superior. Existem diferenças fundamentais entre IES de natureza pública e IES de natureza privada, a começar pelo facto de a entrada em IES privadas não depender do Concurso Nacional de Acesso (CNA). Para além disso, face às vastas diferenças nos mapas de pessoal dos dois tipos de IES, assim como nas progressões de carreira, categorias e critérios de progressão, existe aqui um enorme potencial para grandes problemas, falhas e incongruências. Qual é o propósito de disponibilizar esta opção? Que ganho teria o sistema de Ensino Superior nacional com estas misturas? Não tenho a certeza de que exista uma resposta muito clara a esta pergunta, pelo que tenho dificuldade em entender a motivação do governo.

Também o tema da endogamia não passou ao lado do governo, mas, novamente, a solução proposta não tem nexo nenhum.  

Os Artigos 47º e 49º propõem que “nos três anos subsequentes à obtenção do grau de doutor, um doutorado não pode ser contratado como docente ou investigador, nem exercer funções docentes ou de investigação, na instituição que lhe conferiu esse grau”.

Trata-se de uma abordagem que coloca várias questões muito problemáticas. As regiões mais isoladas do país, como as regiões autónomas, saíram inevitavelmente muito prejudicadas, forçadas a abrir mão dos seus doutorados mas sem igual capacidade de recrutar doutorados vindos de fora. Há também áreas onde a oferta científica é muito limitada e está concentrada em 2 ou 3 instituições, algo que tornaria este sistema muito pouco prático e potencialmente bastante prejudicial. É também importante lembrar que as taxas de endogamia não são iguais entre as várias IES do país. Algumas, como a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tinham em 2021/22  taxas de endogamia superiores a 99%, enquanto outras, como a NOVA SBE ficam-se pelos 4%. Por esta razão, aplicar uma regra generalizada para combater a endogamia sem fazer uma análise caso a caso, não faz qualquer sentido. Combater este problema passa por impor limitações às constituições dos júris que decidem a colocação de docentes de modo a garantir a sua imparcialidade.

Onde estamos e para onde vamos 

A história do RJIES é uma de solavancos políticos, difíceis entendimentos, pouca colaboração e coerência entre governos, muito trabalho ignorado e pouca visão de longo prazo. A abordagem ao tema difere muito significativamente, dependendo não só de que partido está no governo a dada altura, mas também das convicções pessoais dos indivíduos que tutelaram a pasta ao longo das décadas. Como podemos observar, o trabalho da Comissão Independente, nomeada por Elvira Fortunato, pouca influência teve na proposta do ministro Fernando Alexandre. Torna-se muito difícil, com esta falta de capacidade de entendimento político, gestão de interesses, inércia generalizada e, em alguns casos, apego ao documento atualmente em vigor, produzir uma revisão verdadeiramente positiva para o Ensino Superior português. Avizinha-se, quase de certeza, num futuro próximo, uma discussão parlamentar acesa. Espero que, durante esse processo, todos as partes interessadas sejam devidamente ouvidas, e que se chegue a uma solução de progresso e de futuro com apoio político abrangente, para que não se prolongue mais este estado de limbo. Na segunda parte deste texto, abordarei propostas concretas de alteração ao atual RJIES, com especial foco nos interesses do movimento estudantil.

Referências

[1] Heitor, M. (2024). Que Pirâmide Humana? (pp. 217–220). Imprensa Nacional.

[2] Heitor, M. (2024). Que Pirâmide Humana? (pp. 248–249). Imprensa Nacional.

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