Este talho não vai fechar – Ensaio sobre a ética do consumo de carne

A maioria dos nossos dias não é passada a pensar no que comemos ou deixamos de comer. No entanto, quando paramos e refletimos sobre esta vertente da nossa vida em sociedade, podemos observar que realmente há algo de errado com os nossos hábitos alimentares. Não porque estes não são saudáveis, se bem que muitas das vezes não o são, mas porque esses mesmos hábitos são moralmente questionáveis e aéticos.

 “Estamos, literalmente, a brincar com o futuro do nosso planeta – por causa de hambúrgueres” 

Peter Singer

Autoria: Afonso Jacinto, MEMec (IST)

Introdução

Desde a pré-história que a dieta do ser humano consiste maioritariamente numa alimentação à base de carne e outros produtos animais. Foi, de facto, devido a esta alimentação rica em produtos e carne animal que a nossa espécie conseguiu evoluir. Mas já não estamos na pré-história e, como espécie, acabámos por desenvolver uma consciência coletiva e individual que nos permite fazer os julgamentos éticos e morais necessários para condenar certos atos. No entanto, mesmo tendo desenvolvido este espírito social e ambiental, nem sempre fazemos das nossas palavras ações. Ao longo deste texto, dividido em 4 segmentos, irei explorar as razões pelas quais escolhemos comer carne e a ética, ou falta dela, relacionada com o consumo destes produtos, recorrendo a alguns exemplos.

1º Segmento:

Como referi na introdução, o consumo de carne está fortemente enraizado em ambos os hemisférios, tendo um peso mais significativo nos países desenvolvidos, por exemplo nos EUA, Austrália, Espanha e noutros países europeus [1], derivado da “cultura fast-food” existente nos mesmos. Esta cultura, como é regularmente denominada, assenta no topo de vários processos de obtenção de carne e outros produtos animais, muito criticados pela sua imoralidade. 

Nestes autênticos “campos de morte”, os animais, neste caso gado bovino, ovino ou suíno, são mantidos no interior de fábricas, sem nunca ver a luz do sol (é importante esclarecer que nem toda a carne é obtida desta maneira). A sua alimentação baseia-se num consumo excessivo de cereais, para que a produção seja mais eficiente, causando doenças metabólicas e dor digestiva constante. Ao chegarem ao matadouro são atingidos com um prego na cabeça para ficarem paralisados. No entanto, os trabalhadores, que muitas das vezes trabalham em condições bastante precárias, realizam esta operação de maneira incorreta, levando a que alguns destes animais acabem por morrer ainda conscientes, enquanto são esfolados e esquartejados [2].

Para o ser humano, tal como para todos os animais, comer é uma necessidade, e uma das mais importantes. Mas nem sempre a nossa dieta foi à base de carne. A carne é rica em proteína e vitamina B12, sendo também uma ótima fonte de ferro, portanto é fácil de perceber o porquê dos nossos antepassados terem optado por um estilo de vida que incluísse carne. Segundo a Expensive-Tissue Hypothesis [3], o custo de um encéfalo maior é compensado pela redução do tamanho de outros órgãos “caros”, como por exemplo os intestinos, de modo que se possa guardar a energia metabólica noutro lugar. 

Contudo, a redução do tamanho dos intestinos traz um novo problema: a qualidade da nossa dieta teve de aumentar de modo a obtermos nutrientes suficientes para sobreviver. Aparece então a dieta à base de produtos animais. No entanto, isto não justifica o consumo de carne na sociedade atual, visto que na época contemporânea há muitas mais opções de escolha, sendo estas opções também muito nutritivas. Hoje em dia, sabemos também que o consumo excessivo de carne leva à obesidade e a um aumento no risco de doenças crónicas, como doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2 [4]

Mas é um facto que um dos grandes fatores que influencia a nossa escolha alimentar é o prazer que retiramos da nossa refeição. Será este prazer de comer carne um contrapeso justo para o sofrimento animal? Diferentes indivíduos terão diferentes respostas a esta pergunta simples, mas delicada. Bem, as pessoas têm hierarquias de valores distintas, levando facilmente a esta disparidade de opiniões. Quanto a mim? A minha resposta é não. O meu prazer não é, nem chega perto dum contrapeso justo ao sofrimento passado pelo animal. No entanto, isto refere-se apenas ao tratamento do animal em si, e não ao consumo da sua carne. Fosse a abordagem à morte dum animal diferente, seria também diferente a minha opinião, assunto que explorarei no próximo segmento.

2º Segmento:

Quando falamos de ética e, especialmente, a ética enquadrada neste tema, a comparação entre consumo de carne e a escravatura de certos povos parece um erro colossal. Mas bem, aqui vou eu…. Partimos do ponto em que, logicamente falando, não haverá qualquer razão para dizer, arbitrariamente, que o ser humano é superior. O argumento é o seguinte: 

Na altura da escravatura, as pessoas reconheciam que esta era uma prática profundamente errada e um atentado à identidade individual do ser humano, mas como era tão regular, este problema ético não era discutido abertamente, sendo muitas vezes ignorado pelas classes sociais não escravizadas. Encontramos um exemplo disto na Constituição dos EUA, quando os seus fundadores encontraram maneira de relacionar os representantes de cada estado com o número de pessoas a residir nele sem nunca mencionarem a escravatura ou os escravos: “which shall be determined by adding to the whole Number of free Persons, including those bound to Service for a Term of Years, and excluding Indians not taxed, three fifths of all other Persons.”  (“Constitution of the United States,” Art. I, Sec. 2) [5]

Neste excerto é-nos dito que, para as contagens, não devem ser incluídos “índios não taxados” e as pessoas escravizadas contam como 3/5 das pessoas livres, mas nunca se lê “escravos” ou “escravatura” na constituição, porque claramente sabiam que era imoral. A escravatura era tão essencial para a economia norte-americana que esteve implícita na Constituição do país. Assim que a economia deixou de ser dependente da escravatura, a sociedade começou a desviar-se cada vez mais da mesma. Talvez aconteça o mesmo com a produção de carne in vitro, carne fabricada em laboratório. Com o aparecimento de uma tecnologia de tal calibre, seria de esperar que não houvesse necessidade de matar animais. É possível, então, fazer um paralelismo entre a escravatura e o consumo de carne.

Pensemos agora: se nos fossem oferecidos dois hambúrgueres, um criado in vitro e outro de um animal criado usando os métodos atuais. Qual seria a nossa escolha? Bem, a opção óbvia seria a carne criada em laboratório devido à dor mínima, ou mesmo inexistente, causada a um ser vivo, certo? Talvez a maioria da sociedade fizesse essa escolha, pois seria, claramente, a mais correta das duas. Parece então que, para muitas pessoas, a decisão de comer carne ou não comer não se trata de uma decisão moral, quando o deveria ser. E parece, sem dúvida, hipócrita aplicarmos razão e lógica à questão da escravatura de seres humanos, mas decidir, emocionalmente, que não é o caso para animais que experienciam dor similar à nossa [6]. É seguramente uma das maiores imperfeições da sociedade atual. 

É aqui que eu, e certamente muitas outras pessoas, pecamos. Mesmo estando a par de tudo isto, e sabendo tudo o que se passa por detrás das cortinas, continuo a comer carne. E é complicado, sendo que muitas das vezes é quase impossível, se não impossível mesmo, justificar as minhas escolhas ou falta delas. Não sou de maneira alguma a vítima, nem quero passar essa imagem ao escrever isto, mas é bastante difícil viver de uma forma filosoficamente inconsistente. Se estamos mesmo convencidos de alguma coisa, é difícil viver como se não estivéssemos. Se não vivemos segundo uma filosofia, significa que não estamos completamente comprometidos a essa maneira de pensar. No entanto, acho que faz parte de Ser Humano. Temos um conjunto de filosofias e morais, que procuramos seguir, mesmo que com imperfeições. Isto toca claramente no ponto do 1º segmento, onde reconhecemos que diferentes pessoas têm diferentes hierarquias de valores, visto que há opiniões opostas a este assunto quando, logicamente falando, parece apenas haver uma escolha certa a este teste de “Introdução à Moral e Ética”.

Contudo, ao pesquisar e ao pensar no assunto para este artigo, deparei-me com o conceito de “pecuária sustentável”. Seria ético se a indústria animal criasse os animais ao ar livre e os matasse de modo a causar o mínimo de dor possível, podendo, posteriormente, comercializar essa carne para aproveitamento Humano? É de facto uma alternativa plausível, que levaria ao aumento dos preços da carne, fazendo com que a maioria das pessoas reduzisse o seu consumo. Seria, sem dúvida, melhor para o ambiente e, discutivelmente, melhor para os animais envolvidos. 

No entanto, quando tocamos neste ponto, percebemos que podemos sempre voltar à analogia da escravatura, porque tanto neste caso como na escravatura, parecemos derivar a nossa moralidade de uma situação económica. Não acredito que retiremos da economia e do estado financeiro global um senso de moralidade, mas às vezes parece que deduzimos conclusões lógicas do mesmo. Valerá todo este sofrimento um almoço de 10 minutos?

3º Segmento

Como em tudo o que fazemos, há uma dimensão emocional neste assunto. Se perguntar a um miúdo se o seu animal de estimação tem ou não sentimentos, a resposta que recebo é uma cara com olhos bem abertos, como quem me está prestes a contar uma excelente notícia. Então desata a falar sobre aquela vez em que o Bobi o acarinhou quando estava triste, e como ele adora festinhas e miminhos na barriga… E claro, não acredito que o Bobi esteja a fingir, porque não está. Mas tal como o Bobi é capaz de apresentar emoções e de sentir dor, também outros animais são capazes de o fazer. 

Num estudo que aborda a expressão de emoções em vacas, Alexandra Green e os seus colegas analisaram o comportamento de vacas leiteiras num contexto de manada. Concluíram que estes animais se conseguem reconhecer devido a características específicas na vocalização de certos sons, com o propósito de manterem o contacto com o resto da manada e expressar envolvimento, angústia ou entusiasmo [7]. No entanto, não olhamos para um cão como olhamos para uma vaca. 

Existe toda uma ligação emocional com certas espécies de animais que não existe com outras. Se estabelecermos que o propósito da existência de uma vaca é apenas providenciar carne e leite, então ela será isso e apenas isso aos nossos olhos. Posto isto, quem tem que mudar as suas atitudes e ideias preconcebidas em relação a certos animais não são as vacas, nem é o Bobi… Somos nós.

Para tal, temos de perceber que diferentes animais experienciam diferentes tipos de dor, por isso é que estamos a falar de vacas e galinhas e não de escaravelhos ou formigas. Estes insetos sentem, obviamente, dor física, mas não ao nível da dor sentida por um animal mais senciente. Segundo Peter Singer, filósofo e professor australiano, a senciência é a capacidade de um animal ter perceções conscientes do que se passa à sua volta. Muitos estudos sobre este tópico têm sido realizados ao longo de vários anos, tendo concluído que esta consciência deriva de um sistema nervoso central e uma semelhança na estrutura dos neurónios e cérebro ao longo do táxon. Para além disso, foram também encontrados neurónios complexos, que se acreditava só existirem em humanos, em várias espécies de cetáceos, primatas e elefantes. Este conceito de um macaco ser mais consciente que uma mosca não parece um tiro no escuro, mas ainda há muitos estudos por fazer, pelo que estaríamos a entrar no reino da ignorância se o tentássemos discutir cientificamente. 

Há, todavia, uma evidência esmagadora de dados que suporta todas estas afirmações, mas não o traduzimos para o tratamento dos animais. Porquê? Bem, muitos destes estudos focam-se em perceber se o animal sente dor ou angústia, o que talvez seja bater apenas no ceguinho. Se por acaso focássemos os nossos esforços em perceber se os animais sentem felicidade, se conseguem formar amizades duradouras, se são empáticos, etc., talvez conseguíssemos desenvolver algum tipo de relação interespecífica positiva com eles e mudar as nossas atitudes para melhor [8]

4º Segmento

Nos próximos anos, este tema será certamente um dos mais falados, e com razão. Neste artigo, explorámos vários exemplos e ideias que apontam para uma clara “Resposta Certa”, se é que tal existe. Não é difícil perceber que é imperativo mudarmos a maneira como tratamos os animais e o ambiente. Nunca fui, nem sou, muito de espiritualidades, mas sempre que abordo este assunto, e especialmente como uma pessoa que come carne, devo admitir que me faz uma certa confusão. E isto acontece ao longo do espetro do comportamento humano. Vemos esta mesma teimosia em mudar hábitos quando falamos do aquecimento global, do antissemitismo… 

Não sei se foi sempre difícil para o ser humano mudar os seus hábitos e costumes. O que sei é que os nossos antepassados sobreviveram não porque tinham as melhores armas, ou os melhores dentes, ou a melhor proteção contra o frio, mas porque se sabiam adaptar às condições que os rodeavam. Parece que hoje em dia é exatamente o contrário. Presos neste estilo de vida repetitivo e sedentário, muitos de nós esquecemos esta faceta humana e adaptativa. Isto não é um apelo para que as pessoas parem de comer carne, mas sim para que repensem as escolhas e seu o lugar neste planeta, para que os animais sejam tratados com dignidade e respeito, da maneira mais ética possível. 

Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, e com um poder da consciência e da racionalidade vem a responsabilidade de tomar conta do planeta e dos seus habitantes. Somos todos filhos da mesma Terra. Vamos mudar, como muitos antes de nós o fizeram…

“Chegará uma altura em que o homem conhecerá o íntimo de um animal, e nesse dia todo o crime contra um animal será um crime contra a humanidade.” 

Leonardo da Vinci

Referências

[1] Hannah Ritchie and Max Roser (2017) – “Meat and Dairy Production”. Publicado em OurWorldInData.org.

[2] PETA UK – “Animals Killed for Meat”.

[3] Masahito Tsuboi, Arild Husby, Alexander Kotrschal, Alexander Hayward, Séverine D. Buechel, Josefina Zidar, Hanne Løvlie,Niclas Kolm (24 de outubro de 2014) – “Comparative support for the expensive tissue hypothesis: Big brains are correlated with smaller gut and greater parental investment in Lake Tanganyika cichlids”.

[4] Salter A. M. (2018). “The effects of meat consumption on global health”Revue scientifique et technique (International Office of Epizootics)37(1), 47–55.

[5] “The Constitution of the United States: A Transcription.” National Archives. Consultado a 11 de Maio de 2020.

[6] Amanda Lee, Peter Krawczel – ”Do Cows Experience Pain: All Aches to Yes!”

[7] Green, A., Clark, C., Favaro, L. et al. Vocal individuality of Holstein-Friesian cattle is maintained across putatively positive and negative farming contextsSci Rep 9, 18468 (2019).


[8] Proctor H. (2012). Animal Sentience: “Where Are We and Where Are We Heading?”Animals : an open access journal from MDPI2(4), 628–639.

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