Autoria: Maria Rosa (LEIC)
De acordo com o dicionário da língua portuguesa, o culto é definido como um conjunto de práticas religiosas usadas para prestar homenagem ao divino. Na cultura popular, no entanto, o termo é frequentemente empregado para descrever grupos com práticas religiosas fora do comum, abusivas e violentas, lembrando a quem a ouve a família Manson. Em meios académicos contudo o termo é desencorajado e considerado pouco científico.
Definições iniciais de culto focavam-se maioritariamente na diferença da prática religiosa em relação à tradição já presente. Eram caracterizados pela espiritualidade, pelo individualismo e pela sua aparição espontânea combinada e hierarquia pouco definida, que por seu lado contrastava com a frequente existência de líderes carismáticos. Apesar de ser a primeira, e por isso não tão afetada por pressões externas como as suas sucessoras, esta definição não foi consensual. Os seus opositores levantavam dúvidas sobre seu foco na quebra de tradição comum, que depende da população, época e localização em que o “culto” se encontraria inserido sendo altamente subjetiva. Apesar das críticas, esta continuou vigente durante vários anos, possibilitando a clarificação do aspeto problemático.
Vários autores tentam subsequentemente clarificar de que forma os cultos se distinguem das práticas religiosas e culturais dominantes, dividindo-as de acordo com a sua origem, semelhança a religiões preexistentes, relação com o mundo, entre outras.
A aparição de práticas religiosas baseadas na cultura dominante nos anos 60 necessitou uma nova tentativa de definição do termo, visto que muitas vezes estas novas denominações da religião vigente se originavam como uma espécie de “contra-cultura à contra-cultura”, o que faria delas, um pouco ironicamente, a cultura vigente, ou pelo menos um exagero da mesma.
A popularização do termo ocorre então após a aparição deste novo tipo de seitas, tomando um grande foco na faceta potencialmente perigosa destes grupos cujos líderes carismáticos tinham grande poder sobre os crentes, com grande foco na manutenção do in-group, agressivos na sua forma de espalhar a fé e sistemáticos na endoutrinação à mesma. O mérito científico desta nova definição é praticamente nulo, recorrendo a vários apelos à emoção e incrivelmente subjetiva, no entanto é a definição mais conhecida de culto.
Surge então a necessidade de mudança na sociologia: procurar corrigir a perceção geral desta palavra, ou abandoná-la de todo, optando por outros termos no meio académico. A verdade é que não só o novo termo é pouco científico como também causa problemas a nível dos viés negativos frequentemente presentes naqueles que ouvem o termo. Estudos feitos sobre o tópico mostram que um indivíduo, quando confrontado com um convite para uma nova religião, uma denominação cristã ou o exército, vê mais negativamente um “culto” do que as outras opções, o que pode levar a consequências indesejadas ou injustas para membros de novas religiões pouco conhecidas pelo público e consequentemente apelidadas de culto.
A definição vaga utilizada pelo público em geral é também demonstravelmente inútil. Utilizando a Igreja Romana Católica como exemplo, vamos tentar determinar se esta é um culto. Líder carismático? Embora a parte do “carismático” seja debatível, podemos dizer que sim, a Igreja Católica tem uma tal figura no Papa. (Outra interpretação poderia também colocar Jesus Cristo como líder carismático.) Foco na manutenção do grupo e agressivos na forma de espalhar a fé? Recentemente vemos por parte da Igreja um grande esforço pela manutenção da população cristã, procurando lutar contra a crescente secularização de países predominantemente cristãos, por isso, dependendo das interações que uma pessoa tenha tido com crentes, podemos considerar que sim. Sistemáticos na endoutrinação? Desde aulas de Educação Moral e Religiosa Católica à catequese ou à missa, indivíduos que já não praticam a religião caracterizam a forma como foram nela introduzidos como “sistemática” e muitas vezes até como inevitável devido ao contexto religioso do nosso país.
Se através desta definição é possível definir não só a Igreja Católica mas também qualquer religião abraâmica (e possivelmente várias outras), qual o valor da palavra culto neste sentido popular? É um sinônimo de religião? E se for, é necessária sequer a sua existência? Todos estes fatores levam ao seu abandono pelos sociólogos, sendo substituída por termos como “novas religiões” e “religiões emergentes” ou sendo definida pelo autor apenas no contexto dos seus artigos. Na cultura popular o termo ganha uma definição ainda mais abrangente, mantendo-se vivo em conceitos como o de “filme de culto” e “culto da personalidade”.
Referências bibliográficas:
Richardson, J. T. (1993). Definitions of Cult: From Sociological-Technical to Popular-Negative. Review of Religious Research, 34(4), 348. doi:10.2307/3511972
Pfeifer, J. E. (1992). The Psychological Framing of Cults: Schematic Representations and Cult Evaluations. Journal of Applied Social Psychology, 22(7), 531–544. doi:10.1111/j.1559-1816.1992.tb00988.x
‘Cults: history, beliefs, practices’ de Suzanne Newcombe no livro Handbook of Religion: A Christian Engagement with Traditions, Teachings, and Practices (pp.568-572)
https://en.wikipedia.org/wiki/Sociological_classifications_of_religious_movements (consultado dia 17/02/2023)