Publicitar preconceitos de género?

À semelhança da desigualdade existente entre géneros, o marketing está extremamente presente no quotidiano, espelhando, muitas vezes, os ideais da parte da população à qual o produto é direcionado. Contudo, será a publicidade um mero reflexo, inocente, da comunidade em que se insere ou terá um papel ativo na modelação de mentalidades?

Autoria: Inês Dias, MEMec (IST)

Cada vez que saímos à rua, olhamos para as redes sociais ou fazemos uma pesquisa rápida, somos bombardeados por informação sobre empresas e produtos. Toda esta publicidade é da responsabilidade do departamento de marketing, cujo sucesso é essencial para o sucesso da companhia. Com o objetivo de vender, o marketing aproveita-se da psicologia do consumidor para criar necessidade e promover os bens da empresa junto do mercado alvo, refletindo e preconizando, muitas vezes, normas sociais enraizadas e preconceituosas. Por exemplo, na sua maioria, o público alvo dos anúncios de videojogos ou canais desportivos é masculino, enquanto o dos anúncios de detergente para a roupa é feminino. Mas será o marketing a lançar alguns preconceitos, ou estará apenas a aproveitar-se dos existentes e a adaptar-se ao mercado?

Quer seja por hábito, quer seja por pressão da sociedade, podemos observar que a grande maioria das mulheres faz a depilação. É uma norma tão enraizada que, quando aparece alguém que se recusa a retirar uma proteção fornecida pela natureza, é encarada como ativista, denominada de visionária, desafiadora de normas sociais. Ora, os pelos são naturais e perfeitamente aceitáveis no género masculino (o que, pelo novo anúncio da Philips [1], é possível que seja uma ideia que esteja em mudança), portanto de onde veio esta obrigatoriedade de uma pele perfeitamente macia, livre de pelos? Vamos ter que recuar até 1915, quando os responsáveis da marca de lâminas Gillette, já líder do mercado masculino, procuravam expandir as suas vendas. Para efeitos de contextualização histórica, era na mesma época que a moda feminina estava em transição: de um vestuário conservativo, que cobria o corpo todo, para um mais revelador, que expunha os braços. Neste movimento de libertação da mulher, patente na indumentária, a Gillette viu uma oportunidade, potenciada pela exposição das axilas: decidiram criar a ideia de que uma mulher moderna não tinha pelos, que estes eram vergonhosos. No seguinte anúncio, de 1917, é possível observar a genialidade desta estratégia ao, simultaneamente, criar um problema que não existia e oferecer como solução a lâmina da Gillette [2]. A publicidade foi extremamente bem-sucedida, tendo em conta que a ideia plantada na mentalidade da população subsiste até aos dias de hoje.

Pelo contrário, o marketing pode não ser responsável pela alteração do comportamento, refletindo-a apenas, ao acompanhar a mudança. Até à primeira década de 1900, seria praticamente impossível encontrar um homem a utilizar um relógio de pulso, estes não eram sequer fabricados com esse intuito. Era visto como um acessório dedicado apenas às mulheres, delicado e menos preciso do que o habitual relógio de bolso. No entanto, o seu pragmatismo levou à popularização deste instrumento junto de militares em combate. Com o deflagrar da Primeira Guerra Mundial, onde a sincronização de tropas foi essencial para a vitória dos Aliados, que se encontravam em desvantagem numérica, houve uma propulsão do aperfeiçoamento do relógio de pulso, até que estes fossem tão fidedignos como os clássicos de bolso. Quando a guerra acabou, estes militares, atraídos pela sua utilidade e com uma ligação emocional ao acessório que havia permitido o regresso a casa, prolongaram o seu uso, o que, juntamente com o prestígio másculo tipicamente associado aos seus atos, determinou o fim da exclusividade feminina deste acessório. A acompanhar esta mudança, as companhias de relógios começaram a apostar na produção de modelos masculinos, em simultâneo com a promoção da conexão entre a sua utilização e a preponderância do seu portador. O sucesso desta estratégia está patente nos dias de hoje, onde há uma conotação de poder na posse de um Rolex, por exemplo [3].

Atualmente, existe já  publicidade que tenta contornar a discriminação, no entanto, às vezes cai num paradoxo. Num anúncio da marca de detergente para a roupa Surf, o protagonista é um modelo masculino, o que poderia indiciar, em primeira análise, uma mudança na habitual expetativa da responsabilidade única do sexo feminino nas tarefas domésticas [4]. Todavia, o público alvo continua a ser, tendo em conta que vivemos numa sociedade heteronormativa, a mulher. Em oposição, há anúncios que, partindo da mesma intenção de destruição de estereótipos, são extremamente bem conseguidos, como o da Microsoft, protagonizado pela primeira treinadora de futebol americano a alcançar a Super Bowl, Katie Sowers [5], mas enquanto estes forem novidade há um longo caminho a percorrer até ser atingido o fim do preconceito.  

Assim, o que se vê na publicidade pode ser reflexo de um paradigma de desigualdade de género existente no quotidiano. Porém, enquanto não for adotada uma estratégia de marketing por parte das empresas que vise promover valores morais menos conservadores (que a meu ver, são perfeitamente compatíveis com vendas bem-sucedidas), este vai compactuar com a disparidade existente e promover a sua eternização.

Referências

[1] Isto é Philips OneBlade (consultado a 15 de março de 2021)

[2] Women Shave Because of Marketers: How the Industry Created Demand for Women’s Razors (consultado a 15 de março de 2021)

[3] The History and Evolution of the Wristwatch… (consultado a 15 de março de 2021)

[4] Maggi Pio Soares, Melissa, O paradoxo Surf: a ambiguidade do discurso e o que isso diz sobre sua audiência. Um estudo de caso do spot do detergente Surf para o Youtube 

[5] Microsoft super bowl 2020 commercial be the one katie sowers (consultado a 15 de março de 2021)

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