Que Portugal nos resta? Parte 1: Relatório da Pobreza e Exclusão Social?

Autoria: João Carranca (LEEC)

    Há cerca de dois meses, veio a público um documento de 53 páginas. Apesar do seu título e conteúdo, foi ignorado por quase toda a comunicação social e, claro, por quase toda a classe política. Falo do Relatório de Pobreza e Exclusão Social de 2022. Há muito que planeio escrever este texto, algo que adiei, pois esperava a publicação de outro documento de extrema importância: Os Censos 2021. Por alguma curiosa razão, depois de um atraso quase sem precedentes, Os Censos 2021 acabaram por sair no meio de um mundial de futebol e, tal como o Relatório de Pobreza e Exclusão Social, passaram despercebidos diante da esmagadora maioria da população. Este texto será dividido em duas partes, cada uma dedicada  a um dos documentos.

    Folheando o Relatório de Pobreza e Exclusão Social, encontramos uma série de percentagens, contextualizações, gráficos e avisos semi-apocalípticos a negrito. O foco principal é colocado no impacto da pandemia na situação económica dos portugueses, categorizado por uma série de indicadores. Nos primeiros parágrafos encontramos o dado principal: a pobreza em Portugal teve um aumento de 12%, face ao inquérito anterior. 256 mil pessoas a mais. Para contextualizar, trata-se do equivalente a mais de metade da população do concelho de Lisboa.

    A primeira reação a um número assombroso como este será  talvez dizer, com algum apreço, que são números altos, sim, mas que eram inevitáveis. Afinal, foram 2 anos de pandemia. Um número destes estará até talvez dentro daquilo que seriam as expectativas de muita gente. O que talvez não esteja, no entanto, é o que é dito a seguir: olhando para a União Europeia, dos 27 Estados-membros, também a vivenciar os impactos da pandemia, verificamos que apenas a Eslováquia teve um aumento do risco de pobreza ou exclusão social superior ao registado em Portugal. Com 22.4% da população em risco de pobreza ou exclusão social, Portugal passou a ser o 8º país da UE27 com maior proporção da população a viver este tipo de vulnerabilidade social e económica. De facto, a Eslováquia apenas nos supera por 1%. Mais chocante ainda, todos os restantes Estados-membros apresentaram uma variação anual entre uma redução em 11% (Finlândia) e um aumento em 6% (Luxemburgo). A magnitude destes dados pode ser colocada em perspectiva no gráfico abaixo:

  Os nossos dados não estão só largamente à frente dos restantes Estados Membros, estão numa liga quase incomparável.

   Mas a avalanche contínua: o risco de pobreza aumentou 24% face ao ano anterior junto dos trabalhadores por conta de outrem (TCO), face a apenas 5% entre os trabalhadores por conta própria; verifica-se um elevado aumento das desigualdades em Portugal, que se traduziu num aumento de 5.8% no coeficiente de Gini e de 13% no indicador S80/S20, que compara os rendimentos de 20% com rendimentos mais baixos e 20% com rendimentos mais elevados; 16.4% da população não tem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida, sendo os idosos isolados e as mulheres a viverem sozinhas os que apresentam maior proporção de pessoas com esta incapacidade.

   Existe ainda um dado nesta categoria que se destaca e ao qual voltarei no final deste texto: Se em 2020 os jovens com ensino básico tinham um risco de pobreza ou exclusão social 3.5 vezes superior ao dos jovens com ensino superior, em 2021 esta diferença reduz-se para 1.7. Em causa está o forte aumento desta taxa entre os jovens com ensino superior que passou de 8.5% em 2020 para 18.8% em 2021.

    O que é que justifica tais dados? Nomeadamente, o que é que justifica a nossa brutal diferença em relação ao resto da Europa? Para responder a estas perguntas precisamos de saber o que fez Portugal durante a pandemia e de onde partiu o país em comparação com os restantes dos 27.

    Portugal em 2019 possuía um tecido social muito frágil. Já nesta altura uma em cada 6 pessoas podia ser considerada pobre, isto tomando em conta as prestações do Estado Social. Sem elas, mais de 2 em cada 5 seriam pobres. Existe também outra perspectiva muito relevante a ser analisada: a relação das pessoas com o mercado de trabalho.

  Cerca de um quarto de todos os agregados familiares em Portugal está à mercê de situações como trabalho pontual, horários reduzidos ou trabalho estável, mas sazonal. Parecendo pouco, estamos a falar de cerca de 2,5 milhões de pessoas que vivem em constante incerteza e não têm a capacidade de, por exemplo, poupar dinheiro para eventualidades como crises económicas ou pandémicas. Isto está diretamente ligado à dificuldade que cerca de um terço da população tem em fazer face a despesas inesperadas de 540€, ou mais, sem pedir empréstimos. Em 2018, este número era já cerca de 30%. Em Portugal, este dado é particularmente grave pois a margem de manobra da nossa economia é reduzidíssima. A nossa dívida é imensa. E quando falo em dívida não falo apenas da conhecida dívida pública que o Estado contrai. As empresas portuguesas, em 2012 chegaram a dever 127% do PIB, número que só baixou para 94% até 2019. Já as famílias chegaram a 2019 com uma dívida de cerca de 67% do PIB. Não existe em Portugal facilidade em pedir empréstimos, nem disponibilidade por parte dos bancos em ceder esses mesmos empréstimos. Estes são indicadores pouco discutidos, pouco falados, mas que pesam tanto ou mais na receita, para a catástrofe estatística apresentada no Relatório de Pobreza, como o nosso baixo PIB per capita, o déficit da balança comercial ou o peso desproporcional do turismo na nossa economia.

    Em relação à gestão da pandemia, Portugal seguiu um caminho semelhante à Europa Ocidental, se bem que mais restritivo . Na educação, por exemplo, nos diferentes níveis de ensino, as escolas, em Portugal, fecharam mais dias do que a média na OCDE. No caso do ensino primário (a designação usada pela OCDE abrange do 1.o ao 6.o ano em Portugal), as escolas em Portugal fecharam um total de 87 dias contra uma média de 78 na OCDE. De facto, aquilo que se verifica é uma total inversão de tendências em relação à OCDE. Quanto mais baixo o nível de ensino, mais Portugal se distancia da média da OCDE. Apenas no ensino secundário se destaca pela positiva tendo fechado menos dias que a média (92 contra 101).

   É nos níveis de ensino mais baixos que se presenciaram as maiores dificuldades de adaptação, em relação ao ensino online e onde as perdas de conteúdos tiveram, naturalmente, mais impacto e consequências mais profundas, pelo que se exigia  maior flexibilidade ou, pelo menos, os meios necessários para facilitar o processo de adaptação. Os computadores prometidos pelo estado português com esta função não foram entregues em massa, a tempo de servir este propósito. Quanto mais tempo as crianças passam em confinamento e quanto piores as condições de ensino online, maior será a limitação à vida diária dos pais, algo que terá certamente levado a uma perda de rendimentos nos setores menos privilegiados da sociedade. Por outro lado, as infra-estruturas e condições de vida necessárias ao funcionamento deste modelo de ensino fizeram com que Portugal partisse, logo de início, em desvantagem, em relação a países como a Alemanha, a Áustria ou a Espanha. Em Portugal, mais de um quarto das crianças vivem em casas com problemas de infiltrações e humidade, 13% vivem em casas sem aquecimento adequado, 9% não tem iluminação suficiente, 15,5% vivem em casas sobrelotadas e 9% vivem com famílias sem capacidade para cozinhar refeições saudáveis e completas.

    Outra vertente que marcou a gestão da pandemia foi a implementação do sistema de Layoff  em massa, que exigiu um esforço financeiro muito significativo do estado Português. Esforço este proporcionalmente superior aos países da Europa Ocidental, todos eles mais ricos que Portugal, que já sofria das fragilidades anteriormente mencionadas.

    Falando então de um tema que nos interessa a todos, o que é que se tem passado com os jovens, nomeadamente os mais qualificados?

   De facto, durante a pandemia, houve uma grande aproximação, pela negativa, entre o salário dos jovens licenciados face àqueles que não completaram sequer o 12° ano; mas esse não é o único dado relevante. Falemos um pouco de saúde mental: Em França, em 2021, a Foundation FondaMental realizou, em conjunto com o instituto de sondagens IPSOS, um inquérito sobre saúde mental dos jovens entre os 18 e os 24 anos. Mais de 40% revelaram problemas de ansiedade, cerca de 25% reportaram depressão moderada ou severa. Outro inquérito a 25 mil jovens em 10 países, revelou que 22% das pessoas nesta faixa etária têm pensamentos suicidas. O que é que falta aos jovens em Portugal? Tudo ou quase tudo. Durante a pandemia, devido à falta de estabilidade laboral na vida dos jovens, medidas como o layoff serviram de pouco. De facto, em 2020, Portugal era o país com mais desemprego jovem na UE, apenas atrás de Espanha.

   Em relação aos salários, trata-se de uma tendência que antecede a pandemia. O ensino superior é cada vez menos valorizado no mercado interno português, no sentido em que existe uma compactação de salários. O salário médio em Portugal situa-se perto dos 1300€ brutos e não varia significativamente há vários anos. No entanto, o salário mínimo nacional sofreu aumentos constantes, de forma administrativa, até chegar aos atuais 705€. Não existe, verdadeiramente, um aumento de riqueza ou uma expansão da classe média. Existe apenas uma aproximação de salários por baixo.

    Como podemos nós olhar para o futuro? E quando falo do nosso futuro não falo apenas de Portugal em si mas da nossa geração. Recentemente, saiu outra notícia desanimadora. Portugal será, em breve, ultrapassado pela Roménia em PIB per capita, Roménia esta que era há menos de 20 anos o mais pobre dos 27 estados membros. Existe alguma esperança em Portugal, para nós que queremos uma vida decente, que queremos autonomia financeira, que queremos estabilidade? Se o Relatório de Pobreza e Exclusão Social nos conta a história do presente, os Censos talvez nos ajudem a tentar imaginar o futuro.

Referências:

Relatório 2022-ES-CS (eapn.pt)

Peralta, S. (2021). Portugal e a Crise do Século. 5ª edição, Objetiva. Lisboa. 

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