Autoria: João Cardoso (LEIC)

Desde que vim para o IST, um dos meus passatempos preferidos tem sido a apreciação da esplendorosa arte que adorna os tampos de mesas[1] e as portas latrinárias da nossa nobre instituição. Ainda que não seja o primeiro[2] a valorar devidamente estas manifestações de crua paixão, julgo ser um dos mais ávidos. Este meu fascínio deve-se sobretudo à convicção de que estas nos oferecem um prisma através do qual podemos observar o consciente coletivo do Técnico e a sua evolução ao longo das décadas, expostos de forma crua e humana. Por exemplo, seria remisso se não mencionasse o icónico “desISTo”, que remete tão elegantemente para as problemáticas do excesso de trabalho, saúde mental, e impotência, com o mais delicado toque de ironia.

Uma das vezes em que tive vontade de desISTir foi quando, no âmbito desta edição comemorativa, tive o privilégio de ler vários artigos do passado do Diferencial. Não pude deixar de ficar surpreendido pelo seu profissionalismo e rigor jornalístico, que não destoaria por entre as páginas dos mais lidos jornais portugueses. Todavia, fiquei algo intimidado por esta excelência que parece estar fora do meu alcance. No meio destas pessoas talentosas e rigorosas, até que ponto é que pertencerá um gajo qualquer que faz referências ao professor Chibanga[3]?

Não foi a primeira vez que me senti assim. No curso de LEIC, estou rodeado por colegas que começaram a programar ainda imersos no líquido amniótico de suas mães (presumivelmente) e que conseguem habilmente conciliar as suas vidas estudantis e pessoais. Assisto a aulas dadas por professores com páginas na Wikipédia e milhares de citações nos seus artigos. Onde é que toda essa grandeza me deixa?

Para responder a esta pergunta, terei que aludir ao escritor irlandês James Joyce, um dos mais influentes do século XX. É tentador imaginar Joyce como um homem soturno e melancólico, tão dedicado à seriedade e à respeitabilidade que dormia de paletó. No entanto, basta ler a correspondência com a sua esposa[4], Nora, para desmanchar completamente esta ideia. Com efeito, as cartas a Nora rivalizam com a mais bela literatura latrinária, na sua vulgaridade e ordinarice flagrante, mostrando que até as mentes mais brilhantes conseguem apreciar a comicidade do coito e da flatulência.

Acho fascinantes estes momentos em que se entrevê, por entre a brilhância ofuscante de uma grande figura, uma humanidade inegável, incompatível com a nossa visão impossivelmente grandiosa de quem são. E, para mais, deixo de ouvir tanto a voz na minha cabeça que quer que eu desista. Afinal, se mesmo um homem como James Joyce tem momentos em que é perfeitamente ordinário, talvez não sejamos assim tão diferentes quanto isso, ainda que ele faça menos referências ao Professor Chibanga.

De modo semelhante, achei interessante ouvir o professor João Pavão Martins, pioneiro do campo da IA em Portugal, corresponsável pela criação do DEI, e cofundador da SISCOG, a partilhar, na ocasião da sua jubilação, a seguinte lição que recebeu do professor António Portela a propósito da criação da sua empresa: “Prepara-te para gastar 90% do teu tempo a lidar com marretas e apenas 10% a fazer trabalho interessante”[5]. Seria de pensar que, para alguém ter um legado tão impressionante, teria que inalar o néctar dos deuses pelo seu cachimbo, mas afinal este servira apenas para acalmar os nervos, exaltados após lidar com “marretas”.

Creio que, enquanto humanos, imaginamos uma certa aura mística em torno de tudo aquilo que não conseguimos explicar prontamente. Da mesma forma que os nossos antepassados imaginavam que a trovoada tinha que ter alguma explicação divina, por ignorarem a física subjacente, nós assumimos, embora inconscientemente, que as grandes figuras têm algo de mágico que nós não possuímos – alguma capacidade sobre-humana para ter ideias e executá-las, como escrever um livro, criar uma empresa, ou prever o futuro com uma bola de cristal. Todavia, agimos perplexos se alguém nos encarar com reverência – afinal, acompanhámos a nossa própria jornada, e sabemos que por detrás dos nossos sucessos estiveram momentos de incerteza, crítica e enfado. Por esse mesmo motivo, a aura que vemos nos outros desaparece ao vermos que também eles experienciaram esses momentos.

É importante não imaginar estas auras por uma razão muito simples: quando cremos que os outros têm algo que nos falta, nem nos damos ao trabalho de tentar atingir algo semelhante. Newton disse: “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”. O primeiro passo para nos colocarmos em ombros de gigantes é ter confiança que estamos à altura da escalada que temos pela  frente. Chegando ao topo, seremos então capazes de ver mais longe, ou ainda de inovar a arte no Técnico; por exemplo, escrevendo “desISTo” no teto da casa-de-banho. Fica aqui a dica.


Referências:

[1] – https://www.instagram.com/mesasdoist/

[2] – Gato Fedorento – Literatura de WC | YouTube

[3] – Professor Chibanga e o fim da história

[4] – Querida Nora | Snob

[5] – Jubilação do Professor João Pavão Martins | YouTube

2 comentários

Leave a Reply