Raparigas no IST

Fora e dentro da sala de aula parece que é difícil esquecer que somos diferentes pelo mero facto de sermos raparigas. Neste texto exponho aquilo que me parecem ser comportamentos que excluem as mulheres na nossa faculdade.

Autoria: Joana Abreu, LEFT

“Carne de Porca

Com a tua irmã eu namorei A tua velha eu montei!
E vim aqui, pra te dizer Carne de porca não vou mais foder
Lalalala….
E vim aqui pra te dizer
Carne de porca eu não vou mais foder!”

Cancioneiro de Electro

É com estas palavras que estudantes de primeiro ano do curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Instituto Superior Técnico são recebidos no caso de aderirem à ancestral e controversa tradição da praxe. Mas este não é o único momento em que uma rapariga numa engenharia se depara com machismo: ao longo deste texto, para além da praxe, irei abordar situações recorrentes com alunos e professores do IST que, provavelmente, são representativas do estado do ensino superior de engenharias em geral.

O termo “praxe” remonta à segunda metade do século XIX, apesar de algumas práticas semelhantes serem bem mais antigas [1]. A génese da tradição dá-se num tempo em que o ensino superior estava vedado às mulheres, podendo esta ser uma boa justificação para o teor machista de uma parte considerável dos rituais, nomeadamente das canções. No primeiro ano da faculdade participei algumas vezes na praxe e, no final de uma das sessões de atividades, um dos veteranos explicou-nos que não devíamos ficar ofendidos com o conteúdo das canções porque “as raparigas em ‘eletro’ também têm pila”. As letras das canções de praxe, como é de conhecimento geral, vivem da objetificação feminina e dos insultos de teor sexual dirigidos também maioritariamente às mulheres. Se já é desagradável ouvir conteúdos deste género, a sensação agrava-se quando a proporção de raparigas para rapazes é de, aproximadamente, um para dez.

Infelizmente, o desconforto de uma rapariga num curso predominantemente masculino como Engenharia Eletrotécnica não termina na praxe. Desde então ocorreram muito mais situações em que pressenti a presença de uma dicotomia estranha na conceção do que é uma rapariga ou uma mulher por parte de alguns colegas do curso: uma rapariga só pode ser ou atraente ou inteligente. O reflexo desta estranha crença pode não surgir apenas em palavras diretas e explícitas, mas também em certos comentários ou brincadeiras recorrentes. As raparigas consideradas atraentes têm de lidar com um número incontável de situações em que são desrespeitadas e reduzidas ao seu aspeto físico. Por outro lado, as raparigas que não são consideradas atraentes, não necessariamente no sentido de não serem consideradas bonitas, mas de já não serem vistas como objeto de desejo, passam por situações diferentes, mas são também discriminadas em grupos de amigos e de colegas. Para estas raparigas o respeito por parte dos pares é demonstrado com um estranho elogio: “tu és como um homem”. Alguns leitores poderão ficar surpreendidos por descobrir que as mulheres não se deleitam a ouvir isto. Será assim tão incompatível ser digna de respeito e ser mulher?

Mas a autoria de comentários despropositados não se restringe aos alunos: quando estive em Engenharia Eletrotécnica certos professores insistiam em fazer piadas recorrentes sobre mulheres, desde o clássico “mulher a lavar a loiça” até uma analogia entre mulheres e componentes eletrónicas. Este tipo de comentários cria um ambiente de confiança entre os homens/rapazes presentes: naquelas aulas podem fazer-se brincadeiras sobre raparigas e mulheres, os professores podem subtilmente desabafar sobre as esposas e todos se sentem confortáveis. O estereótipo de as mulheres serem “umas chatas” é uma arma cómica bastante eficaz no que cabe a incluir todos na sala. Todos, exceto as dez raparigas entre as cem pessoas presentes que ficam automaticamente excluídas ou que têm de ignorar o seu sexo biológico para poderem pertencer ao grupo. Quando abordo este assunto, não o faço por ficar minimamente ofendida com as piadas feitas: até acharia bastante piada se fossem feitas ocasionalmente em grupos mais íntimos. No entanto, pertencer a uma minoria, saber que isso está constantemente presente na cabeça das outras pessoas e sentir que temos de fazer bastante mais para sermos igualmente consideradas pelos nossos colegas torna-se cansativo. Com estas atitudes os professores legitimam e até incentivam o machismo dos alunos.

Estas situações não ocorrem apenas em Engenharia Eletrotécnica mas também em cursos como Engenharia Informática. Foi-me relatado por colegas que um ou outro professor expõe (pseudo-)estatísticas nas aulas comparando os resultados dos rapazes com os das raparigas em certas cadeiras. “Os rapazes costumam tirar melhores notas.” – uma conclusão que não me parece ter sido assim tão bem estudada, já para não falar do quão despropositado é enunciá-la numa aula com, novamente, uma presença predominantemente masculina.

Não escrevo este artigo apenas para desabafar o meu desalento, pois sei que não sou a única a sentir-me assim. Os dados falam por si: apenas 27,1% dos estudantes de cursos de engenharia em Portugal são mulheres, uma percentagem inferior do que a de há 30 anos atrás. Dentro do IST não acho que a discriminação das mulheres seja transversal a todos os cursos, mas ainda está muito presente em certas áreas, especialmente no ramo da informática, da eletrotécnica e das tecnologias no geral.

Contudo, o sítio mais perigoso onde a ideia de que as raparigas não são tão capazes de programar ou de dominar tecnologias quanto os rapazes parece estar incutida é na mente das próprias raparigas. É cada vez mais cedo que as raparigas sentem a pressão social para serem fisicamente perfeitas e para publicarem fotos em biquíni na praia ao invés de mexer em computadores (que é uma coisa “de rapazes”, os verdadeiros gamers). Não é por coincidência que quando a minha geração era criança brincava com Game Boys e não com Game Girls. 

É essencial desconstruir estes mitos para podermos alcançar uma verdadeira igualdade de género. As raparigas no Técnico não têm bigode, mas sim um futuro promissor pela frente. As alunas de engenharia não precisam de prémios ou medalhas especiais, apenas precisam de ser respeitadas e de não se sentirem excluídas no ambiente fora e dentro das salas de aula.

Referências

[1] “A Praxe como Fenómeno Social”: https://www.dges.gov.pt/sites/default/files/naipa/a_praxe_como_fenomeno_social.pdf
[2]  PORDATA – Base de Dados de Portugal Contemporâneo https://www.pordata.pt/Portugal/Alunos+do+sexo+feminino+em+percentagem+dos+matriculados+no+ensino+superior+total+e+por+%c3%a1rea+de+educa%c3%a7%c3%a3o+e+forma%c3%a7%c3%a3o+-1051-8513

15 comentários

  1. Obrigada por partilhares este artigo, machismo e misoginia no técnico são temas desnecessariamente tabu e não tratados o suficiente para o quanto afetam uma grande porção da população estudantil da faculdade. Revejo-me muito em experiências que descreves, gostei mesmo de ler o que escreveste!

  2. Sendo homem, sempre tive a noção convicta que as mulheres estudam mais, são mais concentradas e têm muito mais foco nas coisas e no próprio curso que os homens e que, como consequência, e em regra geral, tiram melhores notas. Sou de mecânica e este curso tem muitas mulheres coisa impensável há anos atrás…

  3. Obrigada por expores em palavras o que todas já sentimos. Ainda me lembro de uma vez perguntar a um Prof onde estavam as resistências no laboratório e levar com um “o que é que a dama quer?”.

    Vou ficar à espera de um artigo sobre depressão e doenças mentais no IST. Gostava de ver estatísticas e relatos comparados com outras faculdades.

  4. Obrigada pela partilha! Sou a única rapariga num dos meus grupos de trabalho e, apesar de não sentir qualquer desrespeito por parte dos meus colegas, de cada vez que não conseguimos encontrar uma informação online e nos dirigimos ao nosso professor para ajuda ele apenas responde: têm de se expor mais, usem os encantos femininos da vossa colega.

    É sempre frustrante ouvir isto, mas como não quero causar mau ambiente acabo por comer e calar.

  5. Good stuff. Essas canções da praxe foram só mais uma razão para nunca querer meter lá os pés depois do primeiro dia, um verdadeiro dipn skip, para ser inapropridado.
    “Os rapazes costumam tirar melhores notas.” mas também são 90%, adoro a boa investigação de doutorados…

  6. Já estou fora do IST à uns aninhos, mas infelizmente tudo o que descreves, muitas de nós sentíamos. Desde de ter ouvido por parte de um professor “não sei porque meteram as mulheres a aprender coisas de homens”. E eu era de um curso que a percentagem de mulheres e homens era quase 50/50. Mas acredito que um dia as coisas mudam. Parabéns pelo artigo, porque todos pensam mas até hoje nunca tinha lido 😉

  7. Fico muito feliz por este tópico ser levantado. Nos meus anos no técnico houve inclusive um professor de mecânica a escolher trabalhos de laboratório mais fáceis e “apropriados a um grupo de raparigas”, por achar que tínhamos menos capacidade de completar os outros trabalhos. As piadas depois resultam em assumirem coisas erradas e piorarem a qualidade da nossa educação.

    • Estudei no Técnico em Engenharia Electrotécnica há 30 anos. Fico triste por saber que o país evolui muito mas que.neste tema nada mudou ou aliás até piorou.

  8. Quando estava em LEIC havia um certo professor que gostava de divagar nas aulas teóricas sobre como o feminismo o prejudicava pessoalmente (não podia mais abrir portas a mulheres, coitado) e que nos seus tempos na indústria aprendeu como as mulheres não serviam para programar e não deviam passar de testers. Sei de outras ex-alunas com histórias de discriminação sexista – foi mesmo isto, ele dizia abertamente nas nossas caras que recebíamos tratamento diferente por sermos mulheres – por parte deste professor na avaliação de projectos e candidatura a bolsa de investigação. Se fosse hoje fazia queixa, mas na altura com 19/ 20 nem nos apercebíamos da gravidade da situação.

    Parabéns pelo texto, temos de começar a falar abertamente destes problemas.

  9. Estudei no Técnico em Engenharia Electrotécnica há 30 anos. Fico triste por saber que o país evolui muito mas que.neste tema nada mudou. Pessoalmente não tive essa experiência na praxe, foi menos degradante. E com os colegas as diferenças não foram tantas, mas a atitude de uma minoria dos professores foi tal e qual como relatas e deixa memórias para a vida que gostava que fossem.apenas histórias do passado, mas que vejo desiludida que são bem atuais.

  10. Obrigada por partilhares este artigo.

    Eu sou do primeiro ano de LEEC e relaciono me com todos os pontos aqui referidos. Por acaso a praxe vou admitir que houve momentos em que era desconfortável cantar certas musicas mas não me senti “mal” porque na altura os meus próprios doutores pediram desculpa pelo conteúdo dos cânticos e que não foram eles que escreveram e que se nao sentissemos confortáveis cantá los entendiam perfeitamente e for confortante a preocupação deles.
    Quantos às aulas nao tive muitas experiências más mas ja tive um momento em que o que eu dizia ,num trabalho de grupo em que eu era a unica rapariga no laboratório , não era levado em consideração e ficavam os três a discutir entre si deixando me de parte e sempre que dizia alguma coisa era sempre constatado com ” tens a certeza que isso está bem?” e era so comigo e parte mais triste é que esses três rapazes nao se conheciam de lado nenhum nem das aulas mas confiavam mais no que um ou outro dizia e nas contas mesmo quando tinham erros do que no que eu dizia. Achei estranho a interação numa forma geral e preferi acreditar que não tinha origem no facto deu eu ser do sexo feminino.

  11. Está muito bem escrito Joana, conseguiste passar a mensagem com muita clareza! Quanto mais os géneros entenderem como é estar na pele do outro mais fácil será tratarem-se com respeito e igualdade. Parabéns pelo texto, está ótimo.

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