“A Tempestade” no Teatro São Luiz: Uma Análise

Autoria: João Gonçalves (LEEC) e Teresa Nogueira (LEEC)

Enquanto a narrativa se desenrola, as composições de Sibelius, consideradas entre as suas mais evocativas e produzidas especialmente para o texto de Shakespeare, ecoam pelo Teatro São Luiz num projeto de encontros, realizado pela primeira vez em Portugal.

Com atores, cantores, coro e orquestra – Kyiv National Operetta’s Theatre, Orquestra Metropolitana de Lisboa e Coro do Festival de Verão, criou-se um objeto artístico de cariz onírico e epopeico que pretende evidenciar as dinâmicas da natureza humana e a relação entre o indivíduo e os mecanismos políticos do poder. Face à tumultuosa tempestade que assola a humanidade com uma sangrenta guerra a acontecer em plena Europa, a mensagem essencial, espelhada na de Próspero, é que só o perdão e a redenção asseguram um futuro e continuidade.

Comecemos pelo início. A sala de teatro mergulha na obscuridade e na névoa, enquanto seres enigmáticos, representados pelo coro, inundam um navio real. A bordo, encontramos o Rei de Nápoles, o irmão do feiticeiro, António, o seu filho, Fernando, e Sebastião à beira do naufrágio. Numa ilha não muito distante, Próspero, o feiticeiro exilado, observa a destruição num misto de vingança e melancolia. Ao seu lado, a sua filha Miranda assiste, horrorizada, ao caos marinho. Próspero conta a Miranda que 12 anos antes tinha sido deposto pelo seu irmão, que lhe usurpou o reino. Próspero procura agora, com ajuda de Ariel, dualmente protagonizada por Anastasiya Martyniuk, a talentosa cantora de ópera da Kyiv National Operetta’s Theatre, e João Beata, separar os náufragos pela ilha, criando cenários e situações que irão testar, desafiar e eventualmente redimir cada um deles. Paralelamente, Caliban, a criatura nativa da ilha, observa de longe, ressentido e desconfiado das intenções deste feiticeiro que invadiu o seu lar.

Acompanhamos assim três narrativas distintas, cuja dinâmica se desenrola sobre um ambiente sonoro que, habilmente, une as ações dos diferentes grupos na ilha, convergindo num ato final de reconciliação.

Miranda e Fernando: Amor Sob o Olhar Divino

Miranda, filha de Próspero, viveu toda a sua vida numa ilha isolada, longe dos olhos e das intrigas do mundo exterior. O seu encontro com Fernando, o nobre e impetuoso príncipe de Nápoles, marca o início de uma história de amor genuína e imediata que se desenrola num casamento presidido pelos deuses, motor da reconciliação entre as duas famílias.

A história de Miranda e Fernando é narrada através da música e do ambiente. Um dos pontos mais impactantes da sua narrativa ocorre no primeiro ato: Fernando, recentemente naufragado, é conduzido para o coração da ilha pelo encanto melódico de Ariel. O coro envolve Fernando com uma sonoridade poderosa e etérea típica de Sibelius, conhecido pela sua capacidade de capturar paisagens sonoras com um forte caráter emocional.

A cerimónia de casamento, momento crucial da peça, foi acompanhada por uma coreografia primaveril num cenário monocromático e novamente complementada pela diligente ópera de Sibelius. A dança das ninfas, representada pelo coro, criou padrões visuais ao som da cantora lírica Kanteryna Yansechuck, que abençoou a união num matrimónio divino.

Caliban, Estevão e Trínculo: O Golpe de Estado

Quando os divertidos náufragos Estevão e Trínculo chegam à ilha, Caliban vê uma oportunidade de se libertar da tirania de Próspero. Os três formam uma aliança improvável, alimentada por sonhos de poder e vingança, e planeiam um golpe de estado que está, já desde o início, condenado ao insucesso.

O objetivo principal destas personagens é proporcionar um alívio cómico. Contudo, é na combinação da música com o teatro nas suas cenas que encontramos a verdadeira mestria: Tanto Caliban como Trínculo possuem solos líricos na ópera de Sibelius, mas os cantores que dão voz a estes solos não são os mesmos atores que encarnam as personagens ao longo da encenação.  Para harmonizar estes dois elementos na mesma cena, recorreu-se ao facto de ambas as personagens estarem embriagadas durante as cenas. As personagens ficaram com a visão duplicada graças ao álcool e este aspeto é transladado para o público: enquanto um ator fala, o outro canta, em perfeita simetria e espelhamento. Passou a ser possível ter dois atores a interpretar a mesma personagem em palco sem tal se tornar paradoxal.

A mesma situação verifica-se com Ariel. Esta personagem é trazida à vida por dois intérpretes: uma cantora lírica e um ator de teatro. Estes nunca partilham o palco ao mesmo tempo e a transição entre ambos é fluida, guiada pelo ritmo da peça. A escolha de dois intérpretes para Ariel explora a androginia inerente a um espírito do vento, sublinhando o seu caráter etéreo e imprevisível.

O Rei, Gonçalo, Sebastião e António: Entre a Traição e a Usurpação

No centro da trama, temos o Rei de Nápoles, que é acompanhado pelo seu leal conselheiro, Gonçalo. No entanto, o Rei também está na companhia de seu próprio irmão, António, que anteriormente conspirou com o Rei de Nápoles para usurpar o trono de Próspero, o legítimo Duque de Milão. Enquanto vagueiam pela ilha, perdidos e desorientados, António e Sebastião, aproveitando-se da ignorância e da vulnerabilidade do Rei, começam a conspirar contra ele, recomeçando o ciclo temático da traição.

Uma das cenas mais envolventes, tanto a nível visual como musical, é protagonizada por estas personagens. Embaladas pela melodia da “dança das formas“, criaturas diabólicas montam uma mesa para os náufragos, executando movimentos e gestos cíclicos e abstratos. Duas destas entidades deslocam-se de um extremo ao outro do palco, transferindo água de um copo para outro, num ritmo vagaroso e metódico. Num momento distinto, quatro destas criaturas movem-se num fluxo contínuo, passando um tabuleiro de terra de mão em mão, num movimento reminiscente de uma lagarta. O cenário, com os seus tons amarelados nativos à  ilha, destaca o sentimento de alienação dos protagonistas. O banquete termina quando Ariel chega sob a aparência de uma harpia e limpa a mesa com suas asas.

Conclusão: O Eco da Redenção

O fim da peça apresenta-nos um Próspero que apela ao público, desejoso de ser libertado e de regressar ao seu lar. Os aplausos que se seguem são mais do que mero reconhecimento artístico; são a chave que encerra o ciclo de traição e usurpação.

Num mundo assolado por conflitos e desordens, a mensagem transmitida por esta encenação de “A Tempestade” no Teatro São Luiz ressalta, mais do que nunca, a importância do perdão e da redenção. 

Nota: Acima de tudo, uma das características mais distintas da peça é a sua inigualável qualidade sonora, que não só complementa, mas também potencia cada cena e momento. Para os interessados, recomendamos vivamente a escuta das composições na playlist do YouTube ou no álbum do Spotify. Para um vislumbre visual complementar, não deixem de conferir o panfleto disponível online.

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