À Conversa com Vanessa – A aspirante a jornalista cigana que nos tem dado que pensar

Autoria: Joana Abreu (LEFT), João Cardoso (LEIC)

Há uns meses tive a oportunidade de assistir a uma apresentação dada por Vanessa Lopes, licenciada em Ciências da Comunicação e estagiária na área do jornalismo de etnia cigana, no contexto do “3 Milhões de Nós”[1], um evento destinado a inspirar jovens que inclui bastantes palestras e que, no ano em que assisti, explorou o tema “Está nas tuas mãos.”. O testemunho de Vanessa impressionou-me profundamente: apesar de todo o seu contexto sociocultural, Vanessa não descansou enquanto não terminou os estudos e pôde perseguir os seus sonhos. 

Alguns meses depois, quando participava numa manifestação no IST, encontrei a Vanessa, que estava responsável por cobrir o evento para o jornal Público, e tive a oportunidade de lhe propor uma entrevista. Após abordar o assunto com o João, que ficou tão entusiasmado quanto eu com a ideia, desenhámos então esta entrevista, que tem o intuito de dar a conhecer quem é esta mulher, o que a torna tão especial e de que maneira ser cigana condicionou a sua experiência de vida a nível profissional e pessoal. [Joana Abreu]


Joana: Temos hoje aqui presente Vanessa Lopes, atualmente estagiária no Público, e orgulhosamente cigana.

Vanessa já teve uma experiência profissional bastante diversa, começando por trabalhar num call center e prosseguindo o seu percurso na televisão, nomeadamente na realização e no backstage.

Hoje, prepara-se para mais um desafio: em Setembro irá começar o seu mestrado em Ciências Políticas no ISCTE.

João: A primeira questão que te queria colocar era acerca da tua jornada profissional. Quais é que achas que foram as tuas maiores dificuldades nessa jornada, e achas que as tuas origens condicionaram de alguma forma esse percurso?

Vanessa: Obrigada. É bom estar aqui. Então, digamos que eu tive […] mais dificuldades no primeiro emprego, mas também acho que foi um bocado culpa minha, porque já ia com aquela ideia de que ia correr mal, de que as pessoas iam ver que eu sou cigana e depois vão ter uma atitude diferente para comigo, mas estava tudo na minha cabeça, honestamente. […] Decidi mudar um pouco a forma de vestir, a forma de estar, fui-me adaptando. Tive que aprender a ligar e a desligar o botão on-off. Digamos que quando chego a casa, estou no off, e acreditem que vocês não me iriam reconhecer, da forma como eu iria estar a falar, por exemplo. Mas é automático, é como chegar ao estrangeiro e estou automaticamente a falar inglês. Mas depois não senti muita dificuldade. Acho que […] por ser mulher também, houve dificuldades por causa disso. […] Mas eu não ando com um rótulo na testa a dizer que sou cigana, e não é a primeira coisa que eu digo, obviamente. Isso não faz sentido nenhum porque sou uma pessoa igual às outras. Mas, com o passar do tempo é normal que, com a convivência, as pessoas passem a conhecer, porque faz parte daquilo que eu sou, e é engraçado ver que as pessoas são muito preconceituosas, mas muitas delas de forma inconsciente. Não é por maldade, e muitas vezes até mandam uma piada e esquecem-se que estão ao pé de uma pessoa que é cigana, e depois […] apercebem-se: “ah, esqueci-me que tu és cigana”. Ao longo do tempo, os miúdos já crescem a ouvir estas expressões, como “Um olho no burro outro no cigano”, (…) então eu acredito muito que já está tão enraizado que é completamente inconsciente e sem maldade nenhuma, é como dizer outra expressão, ou um ditado português qualquer. Esses foram alguns choques culturais, e faço sempre questão sempre de dizer que aquilo é errado, não que aquilo me afete, ou que vá mudar alguma coisa em mim, mas se eu deixar que aquilo seja normal, se eu não disser nada, as coisas vão continuar a ser normalizadas. Então o objetivo é mesmo este, é dizer “não tem mal nenhum, eu não me sinto afetada com isso”, mas eu acho que devíamos começar desde já a retirar esse tipo de vocabulário das nossas vidas, e especialmente se forem pessoas com filhos – não queremos que a futura geração continue nesta linhagem. 

João: É cortar o mal pela raiz.

Vanessa: Exato, é cortar o mal pela raiz. […] Sinceramente, hoje em dia, se eu não disser que sou [cigana] ninguém sabe que sou ou então sabem porque já viram muitas entrevistas; hoje em dia se calhar já é mais difícil eu esconder, não é? Basta colocar no Google. É impossível mas… diria que é isso. A menos que encontrem qualquer tipo de confronto. 

JA: O que respondes e o que pensas quando ouves discursos com teor discriminatório para os ciganos?

Vanessa: Olha, isso é uma pergunta difícil… Por um lado, é normal que me afete a parte emocional. Por outro lado, isso não vai afetar de forma alguma as minhas decisões, a minha forma de pensar, a minha identidade – nada disso afeta. Mas se calhar, emocionalmente, vai afetando um pouco porque sinto que é para mim, não é? Então aquilo revolta-me um pouco, especialmente nas redes sociais que, infelizmente, ainda não têm uma regulamentação sólida e concreta. As pessoas acham que podem dizer tudo aquilo que querem. Aliás, as pessoas acham que são jornalistas, inclusive. E, ultimamente, uma das coisas que oiço bastante é, nas redes sociais, comentários sobre o que eu possa ter escrito ou dito nas entrevistas que eu dou. Por vezes, até mesmo sem ser dessa forma, mas com temas relacionados com a comunidade cigana, e esses comentários são o pior. […] Nem vale a pena lê-los… Porque depois o que dá vontade é de começar a comentar e a justificar e a explicar que não é bem assim. E a verdade é que muitas pessoas não atingem, simplesmente não vão chegar lá – ao nível de pensamento que eu estou a tentar transmitir. Então não vale a pena, simplesmente. As pessoas acham que, por exemplo, veem o conteúdo jornalístico publicado, e depois comentam como se fossem os donos da razão, a achar que “esta jornalista não sabe do que é que está a falar”. Mas as pessoas não têm noção do tempo que leva a publicar um artigo, da quantidade de tempo que é necessário para investigar aquele assunto, dos contactos que são necessários fazer, das pessoas que estão envolvidas, portanto é todo um trabalho por trás do qual as pessoas não têm noção, mas pelo facto de verem uma coisa ali e acolá na internet acham que são jornalistas de topo e que têm todos os dados estatísticos na sua posse para poderem comentar e isso é um bocado triste, mas, honestamente eu lido bem com isso, a mim não me faz confusão, os comentários discriminatórios. Honestamente, eu sinto mais nas palavras do que propriamente numa ação, porque as pessoas hoje em dia escondem-se muito atrás de um ecrã. Se a pessoa estiver à minha frente, não vai ter coragem para ter essa postura para comigo. Então, diria que as palavras e os ecrãs são um grande problema para a sociedade, eu acho.

João: Como é que achas que a tua família e a tua comunidade têm encarado este percurso? Sentes-te apoiada pelas diversas pessoas da comunidade? 

Vanessa: Portanto, desconstruindo aquilo que é sentir-me apoiada: o que é isto de apoio? Portanto, saber o que é que tu encaras como apoiar.

João: Talvez, o encorajamento, a maneira como falam sobre ti. Como é que te sentes em relação a isso?

Vanessa: Isso é relativo. O apoio é relativo, porque isso é aquilo que tu aprendeste que é apoio. Isso é o que a grande maioria acha que é apoio. Acham que amar os filhos ou amar outra pessoa é, por exemplo, dar um abraço, ou dar um beijo, ou o que for, mas há pais que não dão abraços nem beijos e amam de outra forma porque não têm essa facilidade de relacionamento. Bom, isto já seria outra longa história. 

    Apoiar… Então, voltando atrás onde estávamos, os meus pais aceitam – neste momento aceitam. Houve uma altura em que não aceitavam, mas neste momento é OK. Agora se tu me perguntares – “Apoiam? Mas eles fazem o quê? Dizem: ‘vá, filha, tu consegues’?” – não, eles não fazem isso. Se perguntares – “Eles contribuem financeiramente para alguma coisa?” – não, eles não contribuem financeiramente, nem sequer têm condições financeiras para isso; eu acredito que eles o fariam, mas não têm condições. Portanto, eu estudei e trabalhei ao mesmo tempo, e é o que eu vou continuar a fazer depois de fazer o mestrado. […] Agora, para mim, o facto de já não haver uma oposição, de já não estar a remar contra a maré, já é apoio suficiente. O resto eles não podem dar[…]. É difícil, porque normalmente a família costuma ser o teu maior pilar. Deveria ser o teu maior pilar e de certa forma as pessoas ficam à espera disso, mas na maioria das vezes não é bem assim. Portanto, respondendo à tua pergunta: aceitam, sim aceitam, o que pode ser considerado apoio, mas encorajar ou apoiar de outras formas não o fazem porque também não têm rendimento para tal.

Joana: Se pudesses alterar algo na educação que tiveste, o que seria?

[…]

Vanessa: Bom, eu terminei o 9.º ano e depois não estudei mais. Eu só fui estudar mais tarde aos 23 e não foi nada, nada fácil recuperar todo o tempo perdido. Em primeiro lugar, porque a vida avança e nós vamos ficando um pouco para trás, se bem que eu vi montes de gente na faculdade com uma certa idade e que não sai de lá – aí fiquei mais descansada e aliviada. Mas, para além de a vida andar, tive também que recuperar bases do secundário e até mesmo do 9.º ano; foi um pouco a ferros, portanto eu perdi muitas bases de formação. Muito difícil… Então o que eu mudaria, como é óbvio, é que não tivesse tido essa proibição, essa limitação de não poder estudar e ter tido um percurso completamente normal. Eu entrei nos maiores de 23, tive de estudar a dobrar, para além de ter que trabalhar ao mesmo tempo, ainda tinha de estudar o dobro em casa porque houve coisas que eu não conseguia acompanhar por falta de bases. Acho que era isso que eu mudaria, sem dúvida. Agora, quanto a outras questões mais relacionadas com princípios, isso já seria outra entrevista, provavelmente. Mas na educação, em termos de formação, acho que seria isso.

Joana: Pois isso é o normal… O normal é as pessoas fazerem só o 9.º ano?

Vanessa: Normalmente o 4.º ano. 4.º, 5.º, 6º ano… É na altura em que as mulheres fazem os seus 12/13 anos, por aí. É uma altura em que a grande maioria começa a ter a menstruação. E são consideradas mulheres a partir daí. [Valoriza-se] o conservar: a mulher passa a ficar em casa, e vai-se gerindo com a escola e com a Proteção de Menores […]. E depois é aquilo: vai [à escola] e não vai, depois vai e não vai. E enquanto isso […] vai-se chumbando por faltas, que foi o que me aconteceu também. 

Joana: Então, mas já tinhas de exercer alguma resistência para fazer até ao 9.º ano?

Vanessa: Sim. Eu insistia muito. Eu era muito insistente. Era demasiado insistente.

João: Na altura querias mesmo prosseguir com a parte escolar?

Vanessa: Tinha muitos sonhos na altura e lembro-me perfeitamente: “Ah, mas fazia o percurso todo da escola…”, “Não, oh, mãe, é muito fácil: eu apanho este autocarro assim, depois vou por ali, depois apanho o metro, o comboio.” Portanto, na altura os meus pais moravam em Loures e eu queria ir para a ETIC estudar audiovisual no Cais do Sodré, então era todo um percurso longo. E eu fazia tudo isso e certamente tentei, e […] estou tranquila por ter tentado. Mas isso não aconteceu, não é? Eu insisti bastante mas também tive professores que me apoiaram bastante e  não se limitaram a ensinar, e que falavam com os meus pais e iam a casa… Puxavam bastante porque também viam que havia uma força de vontade da minha parte. Viam que eu realmente queria continuar e que era boa aluna, então eles apostavam nisso. Por isso é que eu consegui terminar o 9.º ano e, mesmo assim, já foi muito difícil. Em todo o caso, ainda bem que passei por isso e que também abri portas. Hoje em dia, a minha irmã vai fazer o 12.º [ano] normalmente, este ano ela vai para o 10.º ano. Para mim, isso é incrível, já valeu todo o esforço. Ela tem 14 anos e vai para o 10.º ano, nunca chumbou. […] Isso é bom.

João: Uau… Acho super impressionante no 9.º ano teres a maturidade para te aperceberes da importância da educação porque era mesmo uma coisa que querias… Para mim nem sequer era uma coisa que valesse o ter que acordar de manhã cedo.

Vanessa: Sim… Isso revoltava-me imenso… Porque, imagina, tu és igual a todos os meus colegas da altura que faziam tudo para faltar às aulas e não ir à escola e chegar atrasados e tudo mais. Porque, lá está, quando nós temos as coisas como adquiridas, nós não valorizamos. Mas também fui obrigada a crescer muito rápido por todas estas nuances, estes obstáculos, […] e então eu sempre soube aquilo que eu quis. E até hoje aquilo que eu quis foi aquilo que aconteceu. A minha mentalidade é muito: “OK, é isto” e “bora, vamos fazer”. Não sei se consigo. Eu cheguei a candidatar-me a coisas para as quais eu não tinha capacidade nenhuma, mas eu fui só para tentar e… OK, o máximo que eu posso receber é um “não” e eu sabia perfeitamente que eu não tinha competências… Eu chegava a uma entrevista e “ah, então como é que se faz tudo isto?”. Eu não sabia, mas eu dizia  “amanhã posso trazer-lhe uma resposta”, e estudava a noite toda para dizer que sabia aquilo. Outras vezes, quando eu sabia que era uma coisa mais longa, dizia “Eu não sei, mas se me contratar, eu amanhã já lhe sei dizer.”, que foi o que me aconteceu, por exemplo, na entrevista do meu último trabalho, na Sport TV. [Perguntaram-me] “Então o que é que sabe sobre futebol?” (a Sport TV é desporto, mas não é bem desporto, que a maioria é só futebol) [ao que respondi] “Não sei nada, mas se me contratar amanhã, sei do início ao fim tudo o que for preciso sobre futebol, treinadores, jogadores.”, e foi assim. Então havia muito essa persistência, tanto que eu não consegui entrar na ETIC, e na altura eu pensava em ir para a faculdade, mas […] ainda não era bem concreto, mais tarde é que eu depois decidi fazer a faculdade. Mas não tinha nenhum curso, e ainda assim entrei em televisão com o 9.º ano de escolaridade, aprendi tudo o que tinha a aprender, até há bem pouco tempo porque eu tinha os meus 23. […] Dei formação a licenciados acabados de sair da faculdade em televisão. No fundo, acho que não é o teu caminho que define o teu sucesso, é tua determinação. […] Porque há muitos homens e mulheres de negócios que não têm qualquer tipo de formação e têm bastante sucesso. Acho que é mesmo foco e persistência.

João: Na preparação para esta entrevista, encontrei um dos teus projetos, que é a rubrica “Mitos ou Verdades” na rádio Cova da Beira, e reparei que tinha sempre uma base muito factual, que recorrias muito às estatísticas e à verdade científica para tentar combater alguns dos preconceitos e das opiniões que certas pessoas têm sobre a comunidade cigana. Mas até que ponto é que achas que uma abordagem factual é importante? Achas que as pessoas estão simplesmente erradas em relação aos factos ou que há uma razão mais emocional, mais ideológica, para terem algum preconceito?

Vanessa: Sempre que eu falo com alguém, essa pessoa afirma sempre ter tido uma má experiência com um cigano. Pelo menos a grande maioria das pessoas com quem eu já falei, que é uma amostra pequena, mas têm sempre alguma experiência. […] As pessoas baseiam-se muito na sua experiência – “um dia quando eu era miúdo e estava na escola…” – como se os miúdos não fossem praticamente todos maldosos – “um cigano fez-me isto” – O no K, foi um cigano mas podia ter sido outro qualquer, ou então na experiência dos outros ou daquilo que veem à volta deles, o que também é uma amostra muito pequena. Então, a nossa opinião é muito baseada nessas experiências que nós vemos à nossa volta, que estão perto de nós, naquilo que já passámos, e também através da comunicação social. Desta maneira, a opinião pública é influenciada por essas coisas e, aliás, a comunicação social tolda muito a opinião pública no geral. Ainda influencia bastante, porque grande parte da nossa população é envelhecida. Ainda vê televisão, por exemplo; que é um dos meios com mais audiência e que alcança esse tipo de faixa etária, esse tipo de pessoas. E não é só isso, mas também aquele ódio de estimação que as pessoas têm porque ao se focarem nisso, ao ouvirem coisas, ao ouvirem coisas, maus exemplos, quase que vão alimentando um “ódiozinho” de estimação, e depois decidem propagar esse ódio de estimação, mesmo que não tenha fundamento. Mesmo que não tenham base suficiente, decidem alimentá-lo com coisas que na verdade não são bem assim, que não são 100% reais, e por isso é que eu utilizo factos porque nada melhor para argumentar e dizer “isto não é assim” do que uma estatística. Não é a minha opinião, os números dizem isto. Para muitos funciona, para outros não. Para a população  iletrada se calhar não funciona tão bem, se bem que às vezes até com pessoas “inteligentes”, no sentido de terem uma certa literacia mais elevada como faculdade, mestrados e às vezes até doutorados, [também nem sempre funciona].  Ou seja, também a inteligência não se baseia muito pelo canudo, pelo curso que nós temos ou pelo trabalho que exercemos, mas espera-se que tenham mais facilidade em conseguir perceber que isto são números, não há como argumentar números, é o que é e ponto. Não é uma opinião, é um facto. E por isso é que peguei nas várias coisas que as pessoas dizem, que eu oiço muito, que muita gente ouve, e fui desconstruir isso porque, na verdade, a maioria das pessoas não está recetiva, não está disponível para desconstruir esse preconceito. Um preconceito é simplesmente uma ideia pré-concebida acerca de alguém ou alguma coisa, mas em que, das duas uma, ou nós decidimos conhecer essa pessoa ou essa situação, ou decidimos ficar na nossa ignorância e continuar a  julgar que aquilo que nós achamos é a única verdade, que não há forma de chegar lá, de outras pessoas chegarem até nós. O desafio é esse mesmo, é fazer com que as pessoas possam estar mais abertas e disponíveis, que a mente delas possa conseguir alcançar coisas que nunca lhe foi dito, e eu estou lá para isso, para lhes dizer aquilo que elas nunca ouviram. Uma das coisas que recentemente falei foi sobre o Rendimento Social de Inserção, é uma das coisas que está sempre no auge…

João: E que gera polémica.

Vanessa: Que gera polémica, e os números dizem que a comunidade cigana é uma minoria dentro da minoria a receber o Rendimento Social de Inserção, mas só se fala dessas pessoas como as subsidiodependentes. E são estas coisas para as quais nós temos de olhar e dizer “não é assim”, porque é uma minoria em Portugal dentro de uma minoria, porque nem toda a minoria em Portugal recebe o Rendimento Social de Inserção.

João: Imagino que seja difícil quando a comunicação social se foca em histórias individuais de pessoas que depois, se calhar até têm mesmo maus comportamentos, mas não são, de todo, representativas. Deve ser difícil combater esse tipo de linguagem individualizada…

Vanessa: Sim. Digamos que a comunicação social é um rótulo que é colocado. Se bem que, agora, já está a acontecer menos porque está na “moda” ser a favor de causas. Por alguma razão, também abriram vagas para diversidade e tudo mais. Agora tudo fica bem… 

[…]

As pessoas, principalmente quando dás uma entrevista à comunicação social, tentam sempre contornar aquilo que tu dizes e fazem as perguntas de modo a obterem a resposta que eles querem obter mesmo que a resposta que querem obter não seja a verdade. É isto que acontece. Eu, inclusive, dei uma entrevista, que foi a pior coisa de sempre, e eu disse que a partir daí não dava mais entrevistas para a comunicação social. Tanto que a última reportagem que eu fiz da SIC foi porque a minha querida Míriam, jornalista, andou atrás de mim para eu dar a reportagem, e eu disse “Míriam, eu não dou mais […] entrevistas para a comunicação social” e expliquei-lhe os motivos todos. Depois, como ela era uma querida, lá me convenceu de que era um conteúdo de investigação e com bases e mais sério, então dei e, por acaso, não me desiludiu e ficou muito bem, foi a última da SIC. Mas, antes disso, tive alguns problemas. […] Antes de eu dar a entrevista, [que] inclusive correu mal, eu disse: “se vocês estão à procura daquela pessoa em que podem colocar uma música de fundo para chorar, que podem mudar de cenário, que vai fazer-se de vítima, que tudo é racismo e que a vida não presta e mais não sei o quê, eu não sou essa pessoa, portanto isso não vai acontecer. Agora sim, se quiserem que eu conte, de forma positiva, como eu normalmente costumo contar, tudo bem” e fui clara. Há coisas que eu não falo para a comunicação social e mencionei quais eram, que não iria responder e que, se o apresentador me perguntasse, eu diria diretamente que não iria responder. Só que, como eu não respondi e como ele não perguntou, decidiram escrever em rodapé. Portanto os oráculos a passar aquilo que eu não disse em entrevista, lindo… Basicamente, foi a pior entrevista de sempre e para mim isso foi uma grande falta de ética. E porquê? Porque querem à força toda rotular as pessoas e colocar um exemplo que dê muita audiência, porque as pessoas em Portugal gostam é de drama. Tanto que essa história, da entrevista, já foi publicada para aí mais de 10 vezes desde que eu a dei, nas redes sociais. Está sempre atual, não entendo. Enfim, continuam a usar a minha imagem para ter clicks nas plataformas digitais. E a partir daí eu disse que não dava mais entrevistas, e não dei, a Míriam é que conseguiu porque foi uma coisa diferente, foi uma reportagem de investigação. Mas é isso, não dou porque a imagem que passam cá para fora da comunidade cigana não é a melhor. E também foi o motivo pelo qual eu optei pela comunicação social, para conseguir alterar um pouco o panorama da coisa, apesar de agora perceber que é mais difícil do que eu achava. Mas pronto, aos poucos vamos fazendo acontecer. 

Joana: Como é que prevês o futuro da comunidade cigana num mundo que coloca cada vez mais ênfase num percurso académico? Achas que a mudança virá das atitudes da comunidade cigana ou do resto da sociedade?

Vanessa: Daqui a muitas gerações talvez haja alguma mudança. Não vai ser na minha, não vai ser na dos meus filhos e, provavelmente, também não vai ser na dos meus netos, porque existe uma cultura muito enraizada ainda e, apesar de já existirem muitas pessoas que optam por se formar e por seguir um percurso diferente, são muito raras. Eu posso dizer que, na altura da minha licenciatura, éramos 30 no país inteiro. Eu era a única na minha faculdade. E isso é assustador… Felizmente, com os anos que passaram,[…] mais uns 40, e no outro ano mais 30, o que mesmo assim continua a ser muito pouco, tendo em mente que é no país inteiro. Mas isto é uma estimativa, não há nada concreto, OK? Baseia-se na experiência que eu tenho, no que eu tenho visto e nos projetos em que me envolvi. Ainda não existe nada concreto, até porque o Censos não fez nenhumas questões relacionadas […] com a etnia – perguntar se é cigano, se não é – visto que não foi aprovado. Sendo assim, nunca conseguimos saber números concretos em relação a isso. Por isso, eu acho que vai demorar. E acho que a integração da comunidade cigana vai demorar bastante. E também é por isso que eu faço o trabalho que faço, a mediação nas escolas, falar com as famílias, e todo este trabalho cultural e trabalho de formação de professores e da própria comunidade. Eu vejo que é muito difícil. Posso dizer que há turmas em que, em 30, só consegui a atenção de uma pessoa… Claro que isso já vale a pena – é mais uma pessoa – mas é muito difícil mudar mentalidades, até as dos jovens, porque já lhes foi incutido isso. Eu não sei como é que eu pensei de outra forma, porque eu vejo à minha volta e está tão enraizado que aquelas pessoas gostam de estar lá, gostam de estar nessa condição e esse é o maior problema. É porque nós queremos mudar, queremos mais formação. Mas se um jovem, um adolescente de 14 anos, tem a cultura tão enraizada que gosta de estar lá e gosta daquele estilo de vida e quer casar com essa idade, muito dificilmente conseguimos uma mudança para algo diferente dessa realidade, mas acho que com o tempo se vai fazendo, mas não vai alterar muito, ainda que cada vez haja mais jovens a formar-se e a integrarem-se e a deixarem a venda ambulante. O objetivo não é que toda a gente seja doutor e licenciado, não é? O mundo precisa de toda a gente e de todas as profissões. O objetivo é que, independentemente daquilo que a comunidade faça, esteja integrada, mas a fazer qualquer coisa, seja a varrer ruas, seja numa loja… Se for um advogado, ou o que for, também é bom, mas não quer dizer que toda a gente tenha que ser advogado e jornalista e por aí fora. Senão seria muito difícil.

João: E monótono também.

Vanessa: Sim. Não havia diferença nenhuma e seria muito difícil viver numa sociedade assim, em que toda a gente queria ser doutor. Portanto, eu tenho esperança que as coisas melhorem e vão melhorando aos poucos, mas não vejo uma mudança muito drástica. Não vejo uma mudança muito acentuada.

Joana: E por parte do resto da sociedade achas que… algo vai mudar? Algo podia mudar?

Vanessa: É muito difícil, porque as pessoas têm mesmo uma ideia sobre a comunidade cigana que é muito, muito negativa, e muito depreciativa. Tanto que, muitas vezes, quando as pessoas sabem que eu sou cigana dizem “Ah, mas tu já não és, porque tu fazes isto, isto e aquilo” ou “porque tu trabalhas”… Mas como assim? Eu deixo de ser quem sou, de ter a minha identidade porque trabalho? Não faz muito sentido. Então, o objetivo é desconstruir esta ideia, mostrando que ser cigano não é ser burro, não é ser sujo… Desconstruir todas aquelas ideias que as pessoas têm na cabeça é desconstruir isso também cá fora. […] Porque, se perguntares aqui na tua faculdade inteira, qual é que é a pessoa que tem o amigo cigano… Desafio-vos a fazer isso. Se perguntarem, se calhar ninguém, ou, se calhar, houve uma pessoa que tem ou, então, tiveram apenas algum contacto mas não propriamente um relacionamento. 

Joana: Pois, é verdade. São mesmo uma comunidade de certa maneira isolada?

Vanessa: Exatamente. E, portanto, não há assim muita gente. Mas também não é porque somos isolados, é porque se, nas várias tentativas, nos são colocadas barreiras. Se nas várias tentativas nos afastam, é normal que a comunidade não se queira integrar. Primeiro, existe um choque cultural grande, isso já é uma barreira, e se as pessoas de fora ainda colocam mais uma barreira é muito difícil. […] Se calhar sou a primeira com quem vocês estão a conversar, não sei, mas é muito complicado. E isto, falando desta forma, parece uma coisa de outro planeta, de outro mundo – O quê? Isto está a acontecer? Em Portugal? Como assim? – Mas é a realidade. A alteração de mentalidades por parte da sociedade maioritária está a ocorrer com estes bons exemplos que vão aparecendo, mas ainda falta dar mais destaque a esses bons exemplos, apesar das pessoas dizerem “Ah, mas porque é que estão a falar desta pessoa que é jornalista? Não é um trabalho como outro qualquer?”. Sim, OK, é um trabalho como outro qualquer e eu desejo que ser jornalista deixe de ser notícia, porque quer dizer que passa a ser normal. Eu desejo muito que isto já não tenha que ser notícia, que eu já não precise de vir aqui, por exemplo, ser entrevistada por vocês, porque isto já é uma coisa normal, sim. Mas, enquanto não é normal, tem de se mostrar os bons exemplos, porque, senão, as pessoas vão continuar a ter ideias pré-concebidas na cabeça, vão continuar a afastar-se, vão continuar a não se envolver e isso não proporciona a evolução do nosso país, dos nossos relacionamentos, nem de nós mesmos enquanto pessoas.

João: Certo. Esta próxima pergunta parte mais de uma perspetiva até de curiosidade própria, e com o intuito de nos poderes esclarecer mais sobre as práticas dentro da comunidade. Em preparação para isto, ouvi-te a falar sobre o papel da religião na tua vida, e gostava de saber qual é o papel da religião na comunidade cigana, quais são as denominações, e que tipo de práticas é que têm. E, depois, como é que isso se relaciona com o papel da religião na tua vida? 

Vanessa: A grande maioria da comunidade cigana converteu-se ao cristianismo. Há muitos anos, havia mais variedade de religiões, mas, pelo menos aqui em Portugal, são evangélicos, são protestantes – converteram-se ao cristianismo, o foi uma coisa boa na comunidade cigana, que veio diminuir a violência… […] O cristianismo, como defende que se deve agir corretamente e procurar aquilo que é bom, que é puro, que é de boa fama, que é agradável, [ajudou nesse aspeto]. […]  A comunidade cigana tem uma coisa muito interessante que é: quando eles acreditam numa coisa e se dedicam a ela, vão até ao fim e cumprem com isso.  Tanto que, na comunidade cigana, a nossa palavra vale ouro. Portanto, nós não assinamos nada, mas se eu te disser aqui que vai ser desta forma, combinamos assim, fazemos este negócio assim. A palavra é ouro e tu não podes falhar com a tua palavra. E, se falhares, existe todo um processo à volta disso, só por causa de uma palavra. A nossa palavra ainda hoje em dia conta. Isto era muito português de há uns anos atrás, não é? Não é assim tão recente. Neste momento a palavra perdeu valor, mas nós mantivemos esta valorização daquilo que nós proferimos. Então levam mesmo a sério e todos aqueles que se converteram ao cristianismo levam o cristianismo mesmo a sério. Todos os mandamentos, por assim dizer, de não roubar, não matar, não dizer falso testemunho contra o teu próximo e por aí fora, são coisas que eles levam a sério, logo, diminuem a taxa de criminalidade em Portugal e isso é uma coisa boa.

Dessa forma, alimentamos também relacionamentos mais saudáveis e também tornam-se pessoas mais envolvidas e mais integradas com os não ciganos, e isso tem acontecido muito. É uma coisa boa. Para mim, eu sempre segui o cristianismo. Digamos que, para mim, não é religião, é um estilo de vida, e está todos os dias naquilo que eu faço, naquilo que eu sou, não tem nada de mecânico, nem de ritual nem nada do género. Funciona como um relacionamento com um amigo. Portanto, eu acredito em Deus, acredito que Deus é meu pai e relaciono-me com o meu pai de uma forma super natural, tal como me relaciono com o meu pai carnal, portanto não há cá nenhuma mística envolvida. E sei que Deus na minha vida foi o impulsionador das minhas ações e das minhas decisões, porque muita gente pode não acreditar, mas eu recebi muitas respostas durante o meu relacionamento com Deus e durante o meu percurso com Deus, e isso é incrível. Imagina audivelmente ouvir respostas para aquilo que tu tens tentado procurar. Portanto, eu acho que se fosse só pela minha força eu não conseguiria, porque a maioria das mulheres não consegue sair da bolha – é muito, mas mesmo muito difícil, e não têm coragem para tal. Eu acho que também não teria coragem, portanto sem dúvida nenhuma que foi uma coragem em que veio uma força sobrenatural que eu sozinha não conseguiria. Por isso é que digo que Deus realmente teve um impacto fundamental em todo o meu percurso e em todas as portas que se abriram. Sem dúvida que Deus esteve na causa, e vai continuando a fazê-lo. O estágio no Público é uma delas e é uma coisa que foi de agora. Foi uma oportunidade única e eu estou lá, são muitas candidaturas e só dois é que foram escolhidos, e eu candidatei-me no último dia, porque eu não me queria candidatar, porque achava que não devia estar a candidatar-me a um rótulo, porque eles abriram vagas específicas para a diversidade nas redações, em Portugal, e eu não queria entrar com um rótulo. Mas lá me convenceram. Eu candidatei-me e fui escolhida e isso para mim é bênção, sem dúvida. Por exemplo, agora também de mais de 300 candidaturas para a comissão da União Europeia, foram 30 selecionadas, eu fui uma delas. Incrível! Portanto eu acho que Deus está em todas as coisas na minha vida. Portugal é imenso, é pequeno mas tem muita gente, e em montes de candidaturas também fui selecionada para fazer parte desta semana inteira com gente de prestígio que me vai ensinar muito. Portanto, eu acho que todas estas pequenas coisas são mesmo incríveis, são mesmo bênção de Deus.

Joana: Gostávamos de concluir com algumas palavras para os nossos ouvintes, que são maioritariamente estudantes desta faculdade.

João: E também partilhar redes sociais, etc.

Vanessa: Não devem estar a perceber nada do que eu estou a dizer. É engraçado, porque os estudantes do Técnico são muito científicos e precisos. [Conheço pessoas assim], por isso percebo perfeitamente. Percebo os dilemas todos. Eu não quero ofender ninguém, mas são realmente mentes complexas. Posso dizer [o seguinte]: descomplica, porque a vida é muito curta. A vida são dois dias, é só olhar e fazer, não precisamos de pensar muito sobre as coisas. Não precisamos de fazer uma equação sobre tudo. A vida é mesmo para ser simples, porque hoje estamos aqui, amanhã podemos não estar. Hoje temos o que temos e amanhã podemos não ter. Nada do que nós temos é adquirido. E, já que falaste em Deus, a Bíblia diz “todos são pó, e ao pó tornarão”. Amigos, nós não somos nada neste mundo, por isso arrisca e faz. E principalmente aqui, com todas as coisas que se têm passado no Técnico, coisas em que eu penso “Como é que é possível?”, mas se não deu, está tudo bem, segue em frente, faz para o ano a cadeira ou o curso, e se te está a fazer mal deixa o curso e vai fazer algo que te faça feliz. Não há motivo para nos focarmos em algo que é tão negativo e tóxico para nós. O meu conselho é mesmo este: simplificar. Se não dá hoje, dá amanhã, se não dá este ano dá para o ano, se não deu, está tudo bem à mesma e a vida anda. Nós vamos ter sempre pessoas que nos vão rodear, são-nos sempre acrescentadas pessoas, circunstâncias, e oportunidades que nós temos que agarrar, e muitas vezes só temos uma vez na vida, por isso eu acho que é simplificar.

Em relação ao meu trabalho, podem acompanhar nas redes sociais, eu uso mais o Instagram @vane.alex*, vou lá publicando muitas coisas sobre o meu trabalho. Em breve vou abrir uma associação direcionada principalmente para jovens universitárias, portanto quando lançar podem estar lá todos a assistir. Vai ter muitos projetos a nível de comunicação social, a nível de integração, a nível de formação, a nível de programas. Fiquem atentos, porque vai acontecer muita coisa boa na associação.

Joana: E há algum nome para a associação ou ainda é segredo?

Vanessa: Não, posso dizer. O nome é “Rizoma”.

João: Há algum trocadilho na palavra? Sei que é uma espécie de raiz.

Vanessa: Sim. É Rizoma porque fala mesmo de raízes, e achei que era uma palavra muito forte, porque tem tudo a ver com o criar raízes, com origens. Tu disseste há bocado “cortar o mal pela raiz”, tudo começa por uma raiz, seja bom ou seja mau. E tudo aquilo que nós semeamos, que nós colhemos, aquilo que nós decidimos hoje, lá a frente é aquilo que nós estamos a colher, fruto das decisões que nós tomamos hoje. E daí o nome “raiz”. O objetivo da associação é mesmo esse, é ajudar a criar raízes saudáveis e que vão dar fruto no futuro. Toda a gente pode ser aquilo que quiser, ponto. É isto que o nome significa. Mas tem um trocadilho que é, em “Rizoma”, se tirares o I e o Z…

João: Fica “Roma”…

Vanessa: Exatamente, e o logótipo vai ter esse trocadilho visível, vai estar bem desenhado ao ponto de a pessoa olhar e ver logo que quando o I e o Z caem é “Roma”, que tem a ver com o povo Roma que foi o nome adotado pela União Europeia para a comunidade cigana para então apagar o nome cigano que existe no dicionário português e que tem um significado negativo, estamos aqui a tentar incutir este novo nome, que não é novo, já tem algum tempo, mas em Portugal está difícil de entranhar.


Se ficaste com curiosidade em saber mais sobre a Vanessa e os seus projetos, deixamos-te aqui alguma informações úteis:

*Instagram: https://www.instagram.com/vane.alex/

Canal de YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCGuXRpXgz7jmJWnhTukAkig

3 Milhões de Nós – Vanessa Lopes: https://www.youtube.com/watch?v=dkkx7VYGBDs

Spotify “Mitos ou Verdades”: https://open.spotify.com/episode/1Rbly57ZtqcCcBzRFqiavd

Nota Final:

Queríamos deixar um grande agradecimento à nossa entrevistada Vanessa, pela disponibilidade e simpatia demonstradas, bem como pela forma como nos inspirou.

Referências:

[1] 3 Milhões de Nós – Vanessa Lopes | YouTube

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