A insatisfação dos jovens vai para além dos baixos salários

Autoria: João Carranca (LEEC)

No debate político atual, quando se fala de jovens qualificados que saem do país, centra-se sempre a discussão nos salários. Para os jovens portugueses, existe no entanto um mundo bem grande de razões que vai para além da questão salarial, e algumas dessas outras razões talvez pesem mais na hora de tomar a decisão de fazer as malas e sair.

Segundo o Observatório de Emigração [1], 30% de todos os que nasceram em Portugal na faixa etária dos 15-39 anos saíram do país. O número absoluto é de cerca de 850 mil pessoas, cujas qualificações médias são bem superiores às qualificações médias nacionais. Não há taxa de emigração na Europa que se compare. Estes dados deram azo a frenéticos debates sobre as dificuldades e anseios dos jovens, mas, como em outras alturas, tudo se focou na questão salarial. Os salários em Portugal são baixos. Muito baixos até, em comparação com a média europeia, mas será que é apenas isso que leva o comum jovem licenciado, a, depois de pesar tudo na balança, deixar para trás o país? Afinal de contas, não é uma decisão fácil. Implica deixar para trás não só o país, mas também amigos, família, rotinas, vivência. Implica todo um processo de complexa e desagradável logística, aliado a grandes burocracias, para, no final, se ir para uma cidade que não se conhece, num país que não se conhece, com uma cultura e língua diferentes da nossa. É tudo um pouco assustador. 

Entre os jovens, não existe talvez classe profissional que emigre mais do que os engenheiros. Desde o primeiro ano de faculdade que a hipótese de sair do país nos é colocada como um caminho preferencial a ficar em Portugal, tanto para quem quer seguir investigação, como para quem pensa em carreiras mais tradicionais nas suas áreas. Não é de todo incomum ver engenheiros informáticos ou eletrotécnicos a assinar contratos com empresas na Holanda, Suécia, Alemanha ou França logo à saída do mestrado sem grande hesitação. Mais importante do que isso é que, depois de assinarem esses contratos,  tendem a não voltar. Enquanto estudante de engenharia e amigo de muitos outros, muitos dos quais pretendem, ou, pelo menos, já pensaram na possibilidade de emigrar, tenho tentado refletir um pouco sobre que outros fatores influenciam a nossa tomada de decisão.

Cultura Laboral

É difícil dizer o que há de não angustiante na pouco discutida mas absolutamente determinante cultura laboral portuguesa. Entra-se moderadamente cedo, sai-se absurdamente tarde. Não há barreiras entre vida pessoal e vida profissional. Chamadas e e-mails ao fim de semana, grandes imprevisibilidades, desorganização, pouquíssima flexibilidade para tudo e poderia continuar. Muitos de nós sabemos disto e temos uma noção clara da extensão dos problemas porque é este o mercado de trabalho em que vivem os nossos pais, irmãos, tios, primos e por aí fora. A comum pequena ou média empresa em Portugal ainda nem sabe muito bem o que é trabalhar com base em tarefas específicas, em vez de horários fixos. Por contraste, em países como a Suécia, há uma espécie de melhor de dois mundos: por um lado, a ideia de que se tem de trabalhar através de um horário fixo está largamente desatualizada, sendo que, por isso, a maioria dos trabalhadores já tem a opção de gerir as suas semanas de trabalho com base naquilo que melhor se ajusta à sua vida pessoal; por outro lado, mesmo em alturas de maior volume de trabalho, é impensável para um gestor intermédio deixar que os seus trabalhadores fiquem no local de trabalho para além do suposto. Se é para sair às 17:00, é para sair às 17:00. Além disso, a separação entre casa e trabalho é muito mais limpa e clara, não há espaço para misturas. Não deixa de ser irónico que quem mais se queixe da emigração jovem na comunicação social sejam muitas vezes pequenos e médios empresários, que perpetuam e encorajam esta cultura laboral.

Benefícios, estabilidade laboral, progressão de carreira e suplementos ao salário

Uma das coisas que mais me marcou foi, no tempo da Troika, ver o meu pai, licenciado em Engenharia Civil, a não conseguir arranjar um emprego estável durante anos. Os meus pais fizeram um esforço para evitar que eu tivesse que lidar com essa realidade, e, talvez por ser ainda criança na altura, não me afetou tão profundamente como a outros, mas nunca me saiu da cabeça. O meu pai nunca na sua vida foi despedido. Acontece no entanto que, naqueles 4 anos entre 2008 e 2012, todas as empresas em que trabalhou foram sucessivamente à falência sem deixar rasto. O setor da construção civil quase colapsou totalmente. A Troika entretanto saiu do país, mas a incerteza de saber se amanhã a empresa onde se trabalha vai ter de fazer lay-offs massivos ou falir, ainda atormenta grande parte da população. Exceptuando as multinacionais, o tecido empresarial em Portugal é pouco sólido e imprevisível. Se é para trabalhar para uma multinacional, é sempre preferível ir para os países onde estão sediadas, do que ficar numa sucursal de menor dimensão e importância estratégica. Num mundo onde as crises económicas são cada vez mais regulares e onde se sabe que aqueles com menos experiência, ou seja, os jovens, são sempre os primeiros sacrificados, tudo isto pesa muito na decisão de ficar ou sair do país. 

O mercado português também não é apelativo no que toca a suplementos ao salário. Não existe de todo uma cultura de bónus por objetivos atingidos para o trabalhador médio, o subsídio de alimentação não é brilhante e nem sequer é obrigatório por lei, e no geral, as ajudas de custo ficam muito aquém daquilo que se vê no resto da Europa Ocidental. Para além disto, as perspectivas de progressão de carreira, mesmo em áreas como a nossa, que se destacam das outras por boa margem, nunca são particularmente motivadoras nem acrescentam nenhum sentido de previsibilidade ao nosso futuro que nos permita planear melhor as nossas vidas. 

A questão fiscal pesa tanto como se diz?

Para alguns, admito que a questão fiscal seja importante ou mesmo decisiva, mas para a maioria não é. A maioria dos que emigram, continuam a ir para países como os nórdicos, França, Holanda ou Alemanha, todos países que cobram tantos ou mais impostos que nós, com benefícios fiscais para jovens não muito diferentes dos nossos. A diferença está no retorno a nível de serviços proporcionados pelo pagamento de elevados impostos: aí o fosso é gigante.

Serviços Públicos: Transportes 

Portugal tem aquela que poderá ser a pior rede ferroviária da Europa Ocidental, um privilégio grandioso e que se reflete na vida da maioria das pessoas. Enquanto que em França, na Alemanha, nos países nórdicos, viver nos chamados “subúrbios” é uma experiência funcional, em Portugal, onde se mistura a centralização das oportunidades de trabalho na capital com redes de mobilidade quase não existentes, implica perder 2-4 horas diariamente em deslocações. As próprias deslocações dentro da capital são medíocres no máximo, com largas extensões da cidade não cobertas por rede de metro, que, onde existe, possui tempos de espera absurdos, especialmente fora das horas de ponta. O serviço de autocarros também é pouco fiável com atrasos significativos. Não existe um projeto real de ciclovia nas metrópoles, que contrastam neste aspeto absurdamente com países como a Holanda ou até mesmo Espanha. Espanha, um país longe do pelotão dos mais ricos da Europa, consegue ter um dos melhores e mais organizados serviços de transporte do mundo, com enorme coordenação intermodal e a segunda maior ferrovia de alta velocidade do mundo, atrás apenas da China. Cá, não há qualquer incentivo a largar o carro. Os serviços utilizados diariamente em massa, como a Linha de Sintra, sofrem constantemente de sobrelotação, com horários que já não se enquadram minimamente com a procura pelo serviço. A sobrelotação é uma experiência normal e expectável num serviço como o metro. Num serviço suburbano que implica viagens de mais de meia hora para muita gente, não é nem pode ser o normal. 

Custo de vida

Uma das ideias mais comuns que surge quando se discute a emigração de jovens qualificados é a de que “Vão ganhar mais, sim, mas a vida também é muito mais cara”. Certo, o custo de vida em Paris é maior que em Lisboa, mas qual é a margem de diferença? No que toca ao gasto principal de qualquer pessoa ou família, habitação, os dados são no mínimo péssimos. De acordo com o site Check in Price [2],dedicado a artigos relacionados com assuntos como o custo de vida em vários países do mundo, Lisboa possui de longe o pior rácio de salário médio por custo médio de arrendamento da Europa inteira. É de facto o único em que o custo de arrendamento supera o salário médio. Em Madrid, por exemplo, o salário médio é 2,5 vezes maior que o custo de arrendamento. Cá é 1,14 vezes menor. Existe um problema de custo de vida ajustado aos salários, sim, mas cá, não no estrangeiro.

Enquanto o debate público não contemplar que o que leva a nossa geração a emigrar é mais do que puramente a questão salarial, continuaremos certamente a sair do país e com cada vez mais frequência. Só olhando para tudo se consegue verdadeiramente ter noção do fosso que existe entre nós e a maioria dos países da Europa Ocidental, e só tendo noção desse fosso se pode começar a pensar em soluções reais.

Referências:

[1] Expresso: “30% dos jovens vivem fora do país”.

[2] Check in Price: “Lisbon has the most unaffordable rent in Europe.”

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