Autoria: Ana Sousa (LMAC)
Quando se fala num país, é comum pensar-se em aspetos que o caracterizam. Talvez a religião predominante, ou os costumes das pessoas sejam imagens bastante imediatas, mas a língua por elas falada é sem dúvida um dos fatores, senão o fator de maior relevância no que toca à descrição de um país. Esta age como um ponto de partida, que nos permite compreender melhor as restantes individualidades de um certo povo.
Ora, se a língua falada pelos nativos serve como base à sua identidade, o que é que acontece num país onde se falam múltiplas línguas? Terá múltiplas identidades? Precisamente.
Moçambique, situado no sul de África, é um país com cerca de 32 milhões de pessoas, e, se a cultura e história que este tem fosse algo quantitativo, o valor talvez não ficasse muito atrás. Tendo como capital e região mais populosa a cidade de Maputo, este é um país cujos costumes surgiram como resultado de vários séculos de movimentos migratórios de grupos étnicos, bem como de domínio sob os quais estes se encontravam.
Os primeiros acontecimentos de que há registo surgiram, entre os séculos I e V, com a fixação dos povos Bantu na zona sul do país, dando origem a uma série de pontos de concentração populacional, que mais tarde se agruparam em tribos. Cada tribo tem singularidades que provêm das relações formadas com os árabes e suaílis, por exemplo, que criaram pontos comerciais no litoral de Moçambique, até à chegada dos portugueses, em 1498. Antes da colonização portuguesa, já existia uma grande variedade de línguas faladas pelo país, que permanecem vivas até hoje. É possível destacar treze destas: Emakhuwa, Xitsonga, Ciyao, Cisena, Cishona, Echuwabo, Cinyanja, Xironga, Shimaconde, Cinyungue, Cicopi, Bitonga, e Kiswahili.
Obviamente, a presença dos portugueses em Moçambique fez com que a quantidade de falantes da língua portuguesa aumentasse significativamente, e, após a sua independência a 25 de junho de 1975, o português foi adotado como língua oficial.
Oficializar uma língua é mudar um país. É transmitir as notícias em português, ensinar em português, estar num meio profissional, subitamente, português. Tendo em conta que só metade da população sabe falar português, e metade desta se encontra concentrada na capital, não é difícil perceber que esta decisão, embora com intenção de unificar o povo, apenas serviu para o distanciar mais.
Quanto mais longe nos encontramos da capital, menos comum é ouvir-se o português. E, não coincidentemente, piores são as condições de vida. É importante notar que este facto não se deve à baixa popularidade da língua nas outras regiões, mas sim, à forçosa imposição desta como meio comunicativo principal à sobrevivência. Relata-se uma maior taxa de analfabetismo, pois a tendência ao abandono escolar é maior se esta for ensinada numa língua que não é familiar.
De modo a atenuar as diferenças no sucesso escolar entre a província de Maputo e o resto do país, pôs-se em curso, em algumas escolas de Gaza e Tete, um novo modelo de ensino que consiste na introdução da língua materna na primária para, posteriormente, se transitar para o português. Esta iniciativa trouxe resultados positivos, quer no desempenho dos alunos, quer no interesse gerado nos pais, na medida em que estes defendem uma educação mais adequada à sua realidade. Manter o ensino vivo, através da implementação das línguas maternas, é um passo importantíssimo na valorização da identidade africana.
Infelizmente, este projeto não está a ser concretizado a nível suficientemente grande, para se notar uma diferença significativa nas condições de vida fora da capital, até porque a escola não é o único fator em consideração, quando se fala de uma sociedade. Continuam, portanto, ainda a existir várias migrações do exterior para o interior da capital, gerando uma maior concentração populacional na zona sul do país.
Muitas das pessoas migradas não se encontram à vontade com o português, tendo maior dificuldade em arranjar emprego, criar relações, e, no fundo, obter as condições de vida de que estavam à espera. A situação não é muito melhor para aquelas que sabem falar português, já que, vir de fora implica ter costumes, sotaques, e experienciar realidades diferentes, servindo muitas vezes como motivo para serem vistos como pouco profissionais. Existe, então, um preconceito ligado às pessoas migradas, principalmente no meio profissional e educacional, havendo uma pressão para estas se assemelharem aos sulistas.
Apesar das dificuldades, conseguem arranjar um emprego e formar uma base sólida o suficiente para criar uma família, acabando por permanecer na capital. As diferenças entre os pais e os filhos são notáveis: ser criado noutra cidade implica crescer noutro ambiente, com outros costumes, práticas e principalmente dialetos. Longe da terra dos pais, é difícil para os descendentes dos migrados manter a cultura dos antepassados viva no seu dia-a-dia, o que vai resultando no progressivo esquecimento da mesma. Embora seja costume haver um esforço por parte dos pais para manter, pelo menos, o respetivo dialeto vivo, o forte contacto dos filhos com o português e o changana (dialeto de Maputo, variante do Xitsonga), acaba por tornar a língua materna menos relevante no seu quotidiano.
Além das influências derivadas do longo historial de colonização, os países vizinhos também desempenham um forte papel naquilo que Moçambique hoje é. Um caso particularmente importante é o da África do Sul, que é responsável por grande parte das importações para Moçambique e é uma das primeiras opções dos moçambicanos quando é necessário emigrar. Uma das suas línguas oficiais é o inglês, e, tal como em Moçambique, também existe uma série de dialetos falados entre a população.
A influência da África do Sul em Moçambique também está associada à crescente presença do inglês no dia a dia dos moçambicanos. Entre os jovens, é habitual haver conversas totalmente em inglês. Além disso, há certas palavras inglesas que foram “aportuguesadas”, e que constituem o calão de Maputo. Por exemplo, “jumpar” (jump + saltar), que, como o nome indica, significa saltar.
Devido a fatores como a mistura dos dialetos das pessoas migradas, a forte presença do inglês e a obrigatoriedade do português, o changana tem vindo a sofrer uma decadência no que toca à frequência com que é falado entre os jovens de Maputo. O changana original é, habitualmente, falado entre as pessoas mais velhas, ocorrendo, por vezes, uma impossibilidade de comunicação entre estes e os seus descendentes.
Como mencionado anteriormente, embora o português tenha sido adotado como língua oficial de modo a unificar a população, o resultado foi precisamente o contrário. Pelo lado positivo, há em Maputo uma variedade cultural fascinante, verificada, por exemplo, pela existência de escolas portuguesas, francesas, americanas, e por aí além. O contacto cultural que eu tive enquanto lá estive emigrada abriu-me os horizontes como nenhum outro país o poderia ter feito, e, embora a unicidade do povo esteja longe de ser atingida, toda esta mistura de nacionalidades, línguas e costumes dão a Moçambique, e principalmente a Maputo, uma nova vertente à sua história cultural. No entanto, mesmo sendo possível retirar algo de positivo na mistura existente em Moçambique, é importante deixar claro que, o que tem de belo, também tem de conflituoso. Embora esta riqueza cultural beneficie uns, não beneficia quem devia: o próprio povo moçambicano.
Referências:
[1] – https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_de_Mo%C3%A7ambique
[2] – https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/dialectos-de-mocambique/5110
[3] – https://www.instituto-camoes.pt/component/content/article?id=14882:mocambique